Entregue.
O corpo torto no sofá.
Os pensamentos tantos que nem há como ordená-los.
O calor.
O calor!
O calor!!!
Esquecimento das frutas. Esquecimento da carne. E o pior, o
esquecimento da cerveja. Talvez ainda seja possível lembrar onde está perdido
um vinho. Em algum lugar sei que está. Lembro de guardá-lo, mas onde?
O mercado fechou cedo. A padaria, se não me falha a memória,
parecia lotada. Pão, queijo e cerveja. A futura noite estará salva! Mas voltar
à rua?
O corpo entregue, torto no sofá. A alma perdida.
Nada disso era assim. Ou teria sido tudo ilusão? Eu me lembro,
era real. Era real? As casas abertas para quem quisesse entrar, as pessoas
dispersas, conversas, as ruas sem carros, futebol com o pai, cervejas em copos
de vidro. Suco, não. Refrigerante. Batatas, bacalhau, carne assada. A
champagne, que as pessoas “corretas” transformaram em sidra ou espumante,
ficava reservada para depois da meia-noite. Havia quem ia à missa. A missa que
acabava tarde. Presentes, presépios, bons protestos. Promessas só no ano novo.
Até que horas a padaria ficará aberta?
Entregue.
A alma torta se traduz no corpo no sofá.
Esse calor! Quem foi que inventou o sol?
As pessoas estavam tão chatas hoje. Tantos abraços forçados e,
ainda assim, não eram nem a metade dos beijos indesejados. Tanto sorriso, tudo
tão amável que se tornou desumano. Que saco!
Prefiro a frieza sincera. Intimidades apenas com os íntimos.
Gosto do fingir não ver, o esquecimento do que se acabou de escutar. Tantas
gargalhadas na rua. Acho que só eu estou
com o humor mau. Deve ser o calor.
Melhor buscar a cerveja. A padaria talvez feche. Nem me
lembrei que tudo acaba mais cedo uma semana antes do ano acabar.
O sofá suporta tanto o torto do meu corpo como a morta da
minha alma.
Onde estará o vinho? Mentalmente, olhos fechados, vasculho
gavetas e portas, armários e guarda-coisas. Nada! Onde estará o vinho.
Acho melhor descer e comprar a cerveja... Se ainda houvesse
companhia para me fazer esse favor, essa gentileza... Se eu tivesse pensado
antes... Eu sei ser gentil. Apenas não sei receber gentilezas. Sinto que fico
devendo favor. Acho que é por isso que os meus relacionamentos não vingam. Se
você não sabe fazer seus relacionamentos vingarem, a vida se vinga. Droga de
solidão!
Mas com um calor desses... qualquer proximidade de outro ser é
indesejada. Viva a solidão!
Acho que é o sofá que entorta o meu corpo. Minha alma respira
por aparelhos. Quem dera respirasse por ventiladores...
O Diabo inventou o calor e as festas de natal. Quer vencer seu
inimigo depois de perder a batalha? Faça isso: Elogie, aplauda, comemore a vitória
dele. Despreze sua derrota. Embriague o vitorioso com a sua conquista. Esvazie
esse momento de glória do seu opositor tornando-a uma mentira consumista
oportunista. Se o nascimento de Cristo foi uma vitória de Deus, o Diabo
inventou o consumo natalino, e o calor. Desmoralizando sua própria derrota, o
Diabo venceu o inocente Deus.
Minha alma está em coma. O meu corpo tanto faz como está.
Preciso vender este sofá.
A última vez que vi aquele vinho foi quando esqueci de comprar
cerveja e fiquei com preguiça de ir à padaria.
Há pessoas que não vejo faz tempo. A vida tem tantos ciclos...
cada ciclo, seus palhaços. Alguns não vejo porquê não sei; os outros também não
sei. Mas são não saberes diferentes, consegue me entender? Eu deveria ter
fugido com o Circo, qualquer Circo. Hoje eu seria trapezista, malabarista,
palhaço, ou, quem sabe, trabalharia na bilheteria. Um tempo em cada canto. Cada
canto com seu tempo. Quantos tempos há num canto? Viveria me buscando e me
fugindo. Fugiria sempre do calor, desse sol sem sentido.
Minha alma precisa estar torta, como esse sofá, para saber se
encaixar nesse meu corpo torto.
O vinho perdido, agora me lembro, estava dentro da virgem mala
de viagem. Foi encontrado um tempo atrás e, que droga!, foi bebido gelado como
se fosse cerveja. Não há mais vinho algum. Não há cerveja. Melhor sair antes da
padaria fechar, se é que ainda não fechou. Preciso sair agora. Caso contrário
estarei com a minha lucidez intacta quando os fogos anunciarem o Natal.
Sobriedade é tudo que não preciso.
Insanidade e um ar-condicionado já!
A embriaguez é divina. Tudo que nos alucina vem de Deus. É
verdade! Deus não é deste mundo. O delírio, assim como a morte, nos tira desse
mundo. Delirantes encontramos Deus. Viva a insensatez!
Acho que estou mesmo no inferno.
Calor!
Calor e sobriedade!
Calor, sobriedade e lembranças!
O inferno está aqui!
Se eu tivesse coragem...
Se eu tivesse coragem...
Se eu fosse corajoso pela, talvez, derradeira vez endireitaria
meu corpo, reanimaria minha alma, sairia deste sofá e finalmente compraria a
cerveja.
Que tolo! Isso não é questão de coragem.
Coragem eu tenho até de sobra. Já enfrentei a gerente do banco
que era minha sogra, lembra? Eu me lembro. Coragem? Coragem eu tenho!
O que me atrapalha é esse calor e essa danada preguiça.
Entregue aos pensamentos tortos que rondam a alma, o corpo e
sofá.
Sem vinho, sem cerveja, sem sequer um guaraná. Será uma
terrível noite sóbria de Natal.
De tortice se sobrevive?
Que calor!
Excelente fotografia do natal dos nossos tempos!
ResponderExcluirMuito bom, e que triste esse natal, pior que faltar a bebida, é lidar com a solidão.
ResponderExcluirObrigado!
ResponderExcluirBravo! Demorei um pouco pra ler porque gosto de ler com tempo. Muito legal. Super identificado com o medo da padaria fechar e a falta de coragem de ir até a padaria.
ResponderExcluirValeu, gracias! Que bom que gostou!
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