terça-feira, 22 de janeiro de 2019

A FILOSOFIA E O AMOR - (do livro: Palavras Que Contam)



A priori, ela me deu um beijo sem mais nem por quê. Afinal, a boca não serve apenas para expressar palavras inventadas pelo homem e que não são, necessariamente, a realidade.
Após a agradável experiência com sua língua, pergunto o seu nome. “Marilena, estudante de filosofia.”
Ela pergunta meu grau de instrução e eu concordo e comento que o dia está realmente bonito.
Passamos a uma animada conversa sobre Hegel, que terminou quando ela me perguntou as horas. Respondi que não sabia, pois meu relógio de sol estava parado. Eu havia me esquecido de dar corda na terra.
Ela não gostou da piada e quis ir embora. Marcamos um encontro para o outro dia, na biblioteca.
Entre óculos reconheci seus livros. Sentei-me ao seu lado e juntos viramos mais de vinte páginas de Foucault.

Da biblioteca fomos ao Municipal. Seria um concerto para piano, que não ocorreu, pois o maestro estava quebrado.
A posteriori, partimos para sua cama de lençol pautado. Ela tirou os óculos e eu parei de pensar.
Resolvemos morar juntos e decidimos pelo meu apartamento: a estante era maior.

Estávamos, dialeticamente, num relacionamento interessante.
Durante a semana eu saía para o escritório, enquanto ela lia Sartre. À noite eu fazia a janta, ouvindo-a ler Platão.
Na cama discutíamos Nietzsche, até um dos dois dormir.
Nos finais de semana, enquanto eu dormia, ela lia Kant. Quando acordava, era ela quem dormia.
Tudo ia bem...
Mas certo dia...
Ao chegar em casa...
Ela guardava seus livros numa mala.

Iria embora.
Eu perguntei o porquê. Ela respondeu que já havia lido todos os meus livros.
Colocou o chapéu e uns óculos que eu ainda não conhecia.
Abriu a porta. Deu o primeiro passo para o elevador.
Desesperado, insisti, querendo saber do nosso amor materialista. A sua resposta foi que nada neste mundo existe, a não ser uma massa pensante. O resto, concluiu, são ilusões criadas por um gênio maligno.
Saiu.  Fechou a porta e me deixou cogitando sozinho.


quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Na Fazenda



O bezerro, que ainda não sabe e nem precisa respeitar as porteiras, vem feliz do passeio.
Nós, as vacas e os bois, entediados com nossos destinos, estranhamos a felicidade. Queremos saber de onde ele vem e o que lhe faz ter esses olhos de esperança.
Será que achou grama nova? Será que o rio está mais limpo, raso e fresco? Será que nasceram mais árvores? Será que as alfaces ou os patos viraram moda na mesa dos humanos? Será que o verão está no fim? Será que o inverno não virá? Será que a primavera terá menos pólen no ar? Será que o outono será mais verde?
O bezerro não sabe nada disso.
O que sabe, então?
Ele estava, como sempre, distraído, perto de onde estavam os humanos. Viu e ouviu alegrias.
Alegrias?

Sim, alegrias! E elas não eram por causa dos próprios humanos. As alegrias foram motivadas pelo rebanho.
O rebanho? Nós?
Sim, nós, o rebanho!
Pelo que o bezerro entendeu, estamos (nós, o rebanho) valorizados. Nossas qualidades passaram fronteiras. As ações até subiram e bateram recordes (isso ele apenas ouviu e repetiu sem saber explicar o que é ou como funciona). Será um novo tempo para os bovinos! Seremos donos do nosso destino (profetizou). Muitos de nós vibram.

Longe do tumulto, andando de um lado para ou outro (para se manter magro e vivo) o boi velho, pensativo, diz que é preciso cuidado quando os fazendeiros estão felizes. As alegrias dos fazendeiros nunca são boas para o rebanho.
Alguns entendem e concordam. Poucos repetem as palavras do mais sábio dos bois. Mas a maioria diz que ele está ultrapassado e só sabe torcer contra.

A maioria está feliz e esperançosa com as alegrias dos fazendeiros. Acreditam piamente que um novo destino está nascendo para os bovinos.
A poucos metros dali, as portas do matadouro recebem nova graxa e os ganchos são afiados.