terça-feira, 20 de agosto de 2019

O Pedro e as pedras - DORIVAL CARDOSO VALENTE



Cidade de fato pequena; não tanto que nela não coubessem lá seus miseráveis, além dos seus milionários e um resto que não sabe que está longe do além e, também, teme e se nega estar perto de lá.
É fato que as pessoas surgem naturalmente como a terra sob os pés. Depois de surgidas é que se criam ou produzem dentro dos padrões patrocinados e, assim, se tornam o que são. Massa, depois de moldada e assada, dificilmente toma outra forma. O que acontece, mais do que esperam os patrocinadores, é que nem sempre o ceramista acerta a mistura e, ao invés de maleável, a matéria fica mais mole ou mais dura. O mesmo acontece com o pão. Um padeiro descuidado altera o sal, o gosto, o forno, a leveza e torna indisponível o produto para o consumo geral da população patrocinada.
Pedro é tido na cidade como um desses pães perdidos que não servem nem para pombos; uma argila misturada e moldada errada; um engano do Mestre. Todo preconceito cabia nele. Não espere que eu relacione esses preconceitos, você já os sabe, talvez até os utilize. A prova disso é que, provavelmente, você já pensou em três ou quatro características de Pedro.

Um dia, por um motivo fútil (como fútil é todo motivo) a cidade chegou a um limite e não suportou mais Pedro. Gritos tapas, socos, chutes, ofensas, cotoveladas presenteavam o corpo da massa mal moldada. Algumas pessoas utilizavam as mãos (que sempre recusaram carinho ou cumprimento ao Pedro) para atingir, com uma raiva desconhecida, a pele da personagem tão maltratada desta história.
Pedro não é um mártir ou um herói. Pedro tem medo. Fugiu como um covarde. Correu como nunca havia feito. E, também de forma inédita, a cidade corria atrás dele. Impossibilitados de alcançá-lo, começaram a jogar pedras que acertavam as costas, as pernas, a bunda, a nuca, o pescoço, a cabeça de Pedro.

Um buraco serviu como abrigo. Protegido quase por completo, Pedro recebia a dor de apenas uma ou outra pedra atirada com mais habilidade. Cansou, assim como se cansaram as pessoas da cidade. Todos, inclusive o alvo, foram dormir.
A madruga despertou a fome em Pedro. Umas árvores com frutos estavam perto. Ele subiu em uma pequena e comeu. Atento, o olhar voltado para a cidade percebeu uma multidão se aproximando. Não demorou muito e as primeiras pedras começaram a chover. A vítima correu para sua toca, assustado.
As pessoas da cidade não foram até onde ele estava. Olhar para Pedro já causava asco nelas, imagine vê-lo assim, ensanguentado. Ficavam a uma distância segura e jogavam as pedras que a pedreira descartou, as panelas que enferrujaram, o resto dos vasos que quebraram, um sofá destroçado. Houve até aquele, que imitando macaco de zoológico, tirou de si mesmo a munição e atirou no coitado.
Quando o céu escureceu e a cidade foi dormir, Pedro procurou por mais das frutas. Comia e olhava para a cidade. Não conseguiria viver assim por muito tempo, precisava de proteção. De quem?
Assim se repetiram alguns dias. Aos poucos a quantidade dos atiradores de pedras foi diminuindo, mas não acabou. Alguns jovens e atléticos estudantes transformaram a atividade de jogar pedras em Pedro em um esporte. Os mais habilidosos jogam, os mais estudiosos orientavam, os que não eram nada disso torciam por este ou aquele.

Pedro pensava como era possível uma pedreira dispensar tantas pedras boas.
Os governantes e os donos da cidade (que mandavam nos governantes) não apareciam nunca. A princípio, Pedro pensou que isso seria uma coisa boa, que os milionários iriam convencer o povo a parar com aquilo. O tempo mostrou que ele estava enganado.
O que os donos da cidade faziam enquanto o povo estava a atirar-lhe pedras?
Devem aproveitar o tempo para construir falcatruas, meditou.
Em tempos difíceis, a solução pode aparecer como uma palavra no meio de uma frase: Construir.
Tantas pedras em volta de Pedro que seria possível fazer um muro. E foi isso que ele começou a fazer.
Quando a população chegou na manhã seguinte e viu aquele murinho de poucos centímetros.
Estranharam! Murmurinhos sobre o murinho diziam que o governo mandou construir aquilo para que ficasse definido o limite máximo para que as pedras fossem jogadas e, assim, tornar mais justa a competição.
A cada noite, antes de iniciar o trabalho, Pedro subia na árvore mais baixa que ainda havia frutos. Comia sempre assustado e atendo, olhando para a cidade. O muro, a cada jornada, crescia de altura ou de largura.   
Na mesma proporção em que o muro de pedras crescia, a competição ficava mais difícil e o número de pedras atiradas diminuía. Pedro menos atingido, mais forte e protegido, trabalhava com mais vontade. Mais algumas noites e o muro estava tão alto e largo que nenhuma pedra mais vinha de além da muralha.
Desmotivado pelo muro, o povo se esqueceu de Pedro e, consequentemente, de lhe jogar pedras.
Um medo ou um susto não passam tão rápidos como as dores de um machucado.
Pedro não sossegou enquanto não murou toda a cidade. Um muro sólido.
Outra habilidade, que a necessidade o fez adquirir, era de subir em árvores. As frutas, agora, só nas mais altas. Um pouco mais seguro, Pedro subia, mesmo de dia, sempre com o olhar atento para
cidade.
Foi por curiosidade que um dia ele, no alto da árvore mais alta, olhou para onde sempre estava desvirado. Percebeu a amplitude do lugar e muitas, muitas, muitas outras distantes cidades. Ficou com medo de que nelas também houvesse pedreiras.
Desceu rápido e se escondeu no buraco.
Não havia mais pedras para protegê-lo de todas as cidades.
E as frutas das árvores acabaram.
A fome, a sede, o frio, a solidão... Tantas necessidades fizeram Pedro criar coragem e caminhar.
No caminho que não sabia, torcia para encontrar um lugar onde as pessoas fossem todas feitas de massas variadas. E que não o entendessem como uma argila que deu errado.
20/08/2019