quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

A CEREJA (do livro PALAVRAS QUE CONTAM)


Esta publicação é dedicada aos amigos: Omar Neder, Gilson Ribeiro e Juliete Vasconcelos)


A cereja se apoiava no fundo do copo vazio. Espetada estava por um palito de dente. Imóvel. A cena, sobre a mesa, ainda trazia um guardanapo manchado de batom e rabiscado com uma frase perdida: Vamos?


Fim de noite ou começo da manhã, qualquer tempo que separe esses limites. Um último olhar para a limpeza por fazer. Mas isso será quando voltar, descansado. Agora vai fechar a porta e ir embora.
Intacto ficou tudo, enquanto o eco do fechar a porta percorreu os espaços.
No escuro, a Cereja se cansou. Sentia a dor do palito a lhe penetrar, intrusamente, a carne. Tortura chinesa, agonia. Tentou, num movimento brusco, a liberdade. Porém o copo, na forma de funil, não lhe dava muito espaço para ação.
Tentativas inúteis e dor maior.
Chorava...
Chorava...
-  Não chore -  disse o Palito com a voz enroscada.
- Estou presa! Sinto dores! Ajude-me.
- Que posso fazer?
Usando todas as suas forças, como se naquele momento parisse uma vida, a Cereja se contraiu e expeliu o intruso Palito do seu interior.
- Não chore – disse o Palito com a voz ofegante, como se o esforço tivesse sido também dele.
A ferida, ainda aberta e um pouco dolorida, não tinha mais importância. A sensação da pequena liberdade era boa e ela quer mais. Era preciso sair do copo.
Uma volta em si mesma e começou a girar. Mais uma volta, e outra, e outra, e outra, e outra... E foram tantas as voltas que começou a girar, subindo pelas paredes do Copo. Chegou ao topo, à boca. Rodava cada vez mais forte. Cada vez mais forte e voou, lançando o Copo para fora da mesa; ele se quebrou como mais um dos inocentes mortos das tantas buscas alheias pela liberdade.
Descompromissada, distante do Martini que lhe lambia o gosto e do Palito que lhe feria o corpo, gozou enfim a alucinógena liberdade.
Visitou outras mesas. Esbravejou contra outros tantos Palitos que levaram à morte outras Cerejas. Inventou hinos e discursos para as amigas ainda presas em Potes, dopadas de almarasquino. Afirmou que Copos e Potes não são prisões que se mereça.
Cantou a solitária liberdade!
E se todos fossem livres?
E se as Cerejas não vivessem tão bêbadas?
E se os Palitos não fossem tão disciplinados e obedientes para manter a ordem?
E se as Garrafas, os Copos e os Potes não aceitassem mais prender ninguém?
E se o Sal voltasse para o mar?
E se cada um não tivesse uma obrigação a cumprir?
Liberdade!
No meio da tarde um eco de porta a se abrir pausou qualquer inanimado movimento. O garçom chegou mais cedo.


Ele foi à cozinha. Pegou um pano, uma bandeja, um balde, o rodo e começou a limpar.
O copo quebrado foi para o lixo, sem mesmo um enterro digno. Mesmo destino tiveram os palitos quebrados, sujos e mordidos, e os guardanapos espalhados. Os copos inteiros foram para a pia.
A cereja que encontrou perdida numa mesa foi para o pote, junto com as outras que estavam, em silêncio, embebidas.
A música e a noite trouxeram as pessoas e os pedidos.
Alguém pediu um Martini.


Um palito qualquer, sem escolher ou ser escolhido, feriu a cereja que ainda sentia as dores das feridas feitas por um outro desconhecido palito.

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