Não! Não chamo o Ano de novo, de novo. Não quero outra vez
recomeçar do nada. Cansei de me reinventar igual, de me boicotar como sempre,
de morrer aos poucos. Essa brincadeira de ser fênix cansou. Será que esse
cansaço passa?
Pudesse definir, ditaria que o tempo passasse sem conta.
Mas
sei que isso é faz-de-conta! O meu tempo, faz tempo, já sabe contar e conta
veloz, cada vez mais.
O que espero do Ano que vem? Apenas que ele venha. Eu o
aguardo como se aguarda a visita de um amigo que certa vez disse, assim meio
sem querer descuidado, que qualquer dia passará em casa para um café.
Não
deixarei o bolo assando no forno, nem a água fervendo para o Ano que dizem vai
chegar.
Quando vier, se eu estiver, será recebido sem cerimônia, sem
falsa polidez. Talvez até lhe diga um palavrão carinhoso, exclamativo e
acolhedor. Será aceito com sorriso e abraço, assim, singular.
Não faço do Ano, que você insiste em chamar de novo, um
amante. Não lhe farei falsas e impossíveis promessas, nem tentarei nele
satisfazer meus desejos ocultos (ocultos até de mim).
Então, entenda! Não quero que o próximo Ano seja o
responsável pelas minhas
mudanças, ou pela minha sorte. Sou o senhor, o
causador, o artista, o diretor, o promotor, o público, a vaia, o aplauso, o
sonhador, o desastre, o motivador, o traidor, o empecilho,
o sol, a terra, a
água, a raiz, o caule, o rabo, o gato, a rosa e o espinho do meu destino.
Ano outro, que não este (que não foi lá muito meu camarada),
se vier, se for amigo, se quiser vinho, venha, venha sem compromisso. Venha que
eu nasci na Penha!
Com 20 anos não somos mais crianças, não somos velhos, não
somos adultos, não somos ainda os culpados, não somos mais inocentes. Não somos
nada!
Não somos nada e isso nos permite ser tudo. Alguém já deve
ter dito que “não ser” significa que estamos abertos para todas as
possibilidades. Já pensou nisso? Isso é incrível (como diria Antônio, meu
personagem na peça Nas Asas do Tempo).
Nos meus 20 anos o mundo estava nas minhas mãos.
Dia 24 de dezembro de 1997, 16:55, com 1910 gramas (ano de
fundação do Corinthians), nascia um garoto prematuro, ainda sem nome, todo
peludo e com toquinha (não sei se ele já nasceu com aquela toquinha ou
colocaram depois). Meu filho!
A luta pela sobrevivência dele adiou a decisão do nome. Uma
enfermeira me pressionou dizendo assim: Pai, a gente precisa chamar ele por um
nome. Qual será o nome dele?
Qual será o nome dele? Era para nascer em 11 de março,
nasceu em dezembro...
Apenas eu e ele. As enfermeiras cuidando das outras
isoletes. Olhe para seus olhos e perguntei:
- Cara, preciso te registrar. Qual é o seu nome?
Ele me olhou de forma séria e carinhosa e respondeu:
- Pai, meu nome é Tiago!
Foram suas primeiras palavras, e as únicas durante alguns
anos.
Com exceção feita a mim, mais ninguém acredita nessa
história (nem o próprio Tiago).
Depois dele ter dito seu nome e eu o ter registrado, fui
pesquisar o significado. Tiago, o protegido por Deus.
E como ele precisou de proteção naqueles primeiros momentos
de vida. Foi para casa apenas 28 dias depois.
Até para encorajá-lo (sempre acredito na força das palavras)
desde pequenino eu o chamo de Grandão. “O Tiagão ão ão, é bonitão ão ão” , fiz essa
musiquinha no aumentativo para que ele entendesse que precisava crescer forte.
E ele cresceu.
O Tiago, se você não o conhece precisa conhecê-lo, é essa
pessoa determinada, incansável, honesto, inteligente (aprendeu a ler antes de entrar na
escolinha), antenado, artístico (cheio de talentos), amável, amigo,
compreensivo, apaixonante... e tantas outras qualidades mais.
Meu filho, aproveite esses seus 20 anos que se iniciam hoje.
É, provavelmente, uma das melhores idades para se viver. Seja responsável, mas
nem tanto. Seja sério, mas não muito. Seja coerente, mas não em excesso. Seja e
siga possibilidades. Seja fé e trabalho. Seja canto e som. Seja ator e tablado.
Seja amigo e amor. Seja! Seja! Seja!
20 anos é a nossa idade de ser: Seja!
Parabéns! Obrigado por me escolher como pai! Eu te amo!
Esta publicação é dedicada aos amigos: Omar Neder, Gilson Ribeiro e Juliete Vasconcelos)
A cereja se apoiava no fundo do copo
vazio. Espetada estava por um palito de dente. Imóvel. A cena, sobre a mesa,
ainda trazia um guardanapo manchado de batom e rabiscado com uma frase perdida:
Vamos?
Fim de noite ou começo da manhã,
qualquer tempo que separe esses limites. Um último olhar para a limpeza por
fazer. Mas isso será quando voltar, descansado. Agora vai fechar a porta e ir
embora.
Intacto ficou tudo, enquanto o eco do
fechar a porta percorreu os espaços.
No escuro, a Cereja se cansou. Sentia a
dor do palito a lhe penetrar, intrusamente, a carne. Tortura chinesa, agonia.
Tentou, num movimento brusco, a liberdade. Porém o copo, na forma de funil, não
lhe dava muito espaço para ação.
Tentativas inúteis e dor maior.
Chorava...
Chorava...
-
Não chore - disse o Palito com a
voz enroscada.
- Estou presa! Sinto dores! Ajude-me.
- Que posso fazer?
Usando todas as suas forças, como se
naquele momento parisse uma vida, a Cereja se contraiu e expeliu o intruso
Palito do seu interior.
- Não chore – disse o Palito com a voz
ofegante, como se o esforço tivesse sido também dele.
A ferida, ainda aberta e um pouco
dolorida, não tinha mais importância. A sensação da pequena liberdade era boa e
ela quer mais. Era preciso sair do copo.
Uma volta em si mesma e começou a girar.
Mais uma volta, e outra, e outra, e outra, e outra... E foram tantas as voltas
que começou a girar, subindo pelas paredes do Copo. Chegou ao topo, à boca.
Rodava cada vez mais forte. Cada vez mais forte e voou, lançando o Copo para
fora da mesa; ele se quebrou como mais um dos inocentes mortos das tantas
buscas alheias pela liberdade.
Descompromissada, distante do Martini
que lhe lambia o gosto e do Palito que lhe feria o corpo, gozou enfim a
alucinógena liberdade.
Visitou outras mesas. Esbravejou contra
outros tantos Palitos que levaram à morte outras Cerejas. Inventou hinos e
discursos para as amigas ainda presas em Potes, dopadas de almarasquino.
Afirmou que Copos e Potes não são prisões que se mereça.
Cantou a solitária liberdade!
E se todos fossem livres?
E se as Cerejas não vivessem tão
bêbadas?
E se os Palitos não fossem tão
disciplinados e obedientes para manter a ordem?
E se as Garrafas, os Copos e os Potes
não aceitassem mais prender ninguém?
E se o Sal voltasse para o mar?
E se cada um não tivesse uma obrigação a
cumprir?
Liberdade!
No meio da tarde um eco de porta a se
abrir pausou qualquer inanimado movimento. O garçom chegou mais cedo.
Ele foi à cozinha. Pegou um pano, uma bandeja,
um balde, o rodo e começou a limpar.
O copo quebrado foi para o lixo, sem
mesmo um enterro digno. Mesmo destino tiveram os palitos quebrados, sujos e
mordidos, e os guardanapos espalhados. Os copos inteiros foram para a pia.
A cereja que encontrou perdida numa mesa
foi para o pote, junto com as outras que estavam, em silêncio, embebidas.
A música e a noite trouxeram as pessoas
e os pedidos.
Alguém pediu um Martini.
Um palito qualquer, sem escolher ou ser
escolhido, feriu a cereja que ainda sentia as dores das feridas feitas por um
outro desconhecido palito.
Esquecimento das frutas. Esquecimento da carne. E o pior, o
esquecimento da cerveja. Talvez ainda seja possível lembrar onde está perdido
um vinho. Em algum lugar sei que está. Lembro de guardá-lo, mas onde?
O mercado fechou cedo. A padaria, se não me falha a memória,
parecia lotada. Pão, queijo e cerveja. A futura noite estará salva! Mas voltar
à rua?
O corpo entregue, torto no sofá. A alma perdida.
Nada disso era assim. Ou teria sido tudo ilusão? Eu me lembro,
era real. Era real? As casas abertas para quem quisesse entrar, as pessoas
dispersas, conversas, as ruas sem carros, futebol com o pai, cervejas em copos
de vidro. Suco, não. Refrigerante. Batatas, bacalhau, carne assada. A
champagne, que as pessoas “corretas” transformaram em sidra ou espumante,
ficava reservada para depois da meia-noite. Havia quem ia à missa. A missa que
acabava tarde. Presentes, presépios, bons protestos. Promessas só no ano novo.
Até que horas a padaria ficará aberta?
Entregue.
A alma torta se traduz no corpo no sofá.
Esse calor! Quem foi que inventou o sol?
As pessoas estavam tão chatas hoje. Tantos abraços forçados e,
ainda assim, não eram nem a metade dos beijos indesejados. Tanto sorriso, tudo
tão amável que se tornou desumano. Que saco!
Prefiro a frieza sincera. Intimidades apenas com os íntimos.
Gosto do fingir não ver, o esquecimento do que se acabou de escutar. Tantas
gargalhadas na rua. Acho que só eu estou
com o humor mau. Deve ser o calor.
Melhor buscar a cerveja. A padaria talvez feche. Nem me
lembrei que tudo acaba mais cedo uma semana antes do ano acabar.
O sofá suporta tanto o torto do meu corpo como a morta da
minha alma.
Onde estará o vinho? Mentalmente, olhos fechados, vasculho
gavetas e portas, armários e guarda-coisas. Nada! Onde estará o vinho.
Acho melhor descer e comprar a cerveja... Se ainda houvesse
companhia para me fazer esse favor, essa gentileza... Se eu tivesse pensado
antes... Eu sei ser gentil. Apenas não sei receber gentilezas. Sinto que fico
devendo favor. Acho que é por isso que os meus relacionamentos não vingam. Se
você não sabe fazer seus relacionamentos vingarem, a vida se vinga. Droga de
solidão!
Mas com um calor desses... qualquer proximidade de outro ser é
indesejada. Viva a solidão!
Acho que é o sofá que entorta o meu corpo. Minha alma respira
por aparelhos. Quem dera respirasse por ventiladores...
O Diabo inventou o calor e as festas de natal. Quer vencer seu
inimigo depois de perder a batalha? Faça isso: Elogie, aplauda, comemore a vitória
dele. Despreze sua derrota. Embriague o vitorioso com a sua conquista. Esvazie
esse momento de glória do seu opositor tornando-a uma mentira consumista
oportunista. Se o nascimento de Cristo foi uma vitória de Deus, o Diabo
inventou o consumo natalino, e o calor. Desmoralizando sua própria derrota, o
Diabo venceu o inocente Deus.
Minha alma está em coma. O meu corpo tanto faz como está.
Preciso vender este sofá.
A última vez que vi aquele vinho foi quando esqueci de comprar
cerveja e fiquei com preguiça de ir à padaria.
Há pessoas que não vejo faz tempo. A vida tem tantos ciclos...
cada ciclo, seus palhaços. Alguns não vejo porquê não sei; os outros também não
sei. Mas são não saberes diferentes, consegue me entender? Eu deveria ter
fugido com o Circo, qualquer Circo. Hoje eu seria trapezista, malabarista,
palhaço, ou, quem sabe, trabalharia na bilheteria. Um tempo em cada canto. Cada
canto com seu tempo. Quantos tempos há num canto? Viveria me buscando e me
fugindo. Fugiria sempre do calor, desse sol sem sentido.
Minha alma precisa estar torta, como esse sofá, para saber se
encaixar nesse meu corpo torto.
O vinho perdido, agora me lembro, estava dentro da virgem mala
de viagem. Foi encontrado um tempo atrás e, que droga!, foi bebido gelado como
se fosse cerveja. Não há mais vinho algum. Não há cerveja. Melhor sair antes da
padaria fechar, se é que ainda não fechou. Preciso sair agora. Caso contrário
estarei com a minha lucidez intacta quando os fogos anunciarem o Natal.
Sobriedade é tudo que não preciso.
Insanidade e um ar-condicionado já!
A embriaguez é divina. Tudo que nos alucina vem de Deus. É
verdade! Deus não é deste mundo. O delírio, assim como a morte, nos tira desse
mundo. Delirantes encontramos Deus. Viva a insensatez!
Acho que estou mesmo no inferno.
Calor!
Calor e sobriedade!
Calor, sobriedade e lembranças!
O inferno está aqui!
Se eu tivesse coragem...
Se eu tivesse coragem...
Se eu fosse corajoso pela, talvez, derradeira vez endireitaria
meu corpo, reanimaria minha alma, sairia deste sofá e finalmente compraria a
cerveja.
Que tolo! Isso não é questão de coragem.
Coragem eu tenho até de sobra. Já enfrentei a gerente do banco
que era minha sogra, lembra? Eu me lembro. Coragem? Coragem eu tenho!
O que me atrapalha é esse calor e essa danada preguiça.
Entregue aos pensamentos tortos que rondam a alma, o corpo e
sofá.
Sem vinho, sem cerveja, sem sequer um guaraná. Será uma
terrível noite sóbria de Natal.