segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

GAROA - Dorival Cardoso Valente


Quando se encontraram, na Rua do Sem Querer, ela não era mais menina, ele não envelhecera tanto. Os corpos trazem histórias diferentes da alma.
O que terá sido?
O que teria sido?
Perguntas que não se fazem sozinhas, mas se adivinha.
O trivial contar dos dias, das vitórias, de uma ou outra batalha perdida.
Os ouvidos ouvem. A boca responde. Mas os olhos...
Os olhos não buscam palavras, não precisam delas.
As mãos buscam a bolsa, o bolso. Controlam os braços.
A ponta do pé esquerdo dele chuta o chão. O pé direito finca-se no solo como um esporão. Não vai nem vem.
O pé direito dela apaga o inexistente cigarro e seu calcanhar circula como uma brincadeira infantil. O pé esquerdo finca-se como um esporão no solo. Não vai nem vem.
Os pêlos eletrizados.
O coração, quem diria?, acelerado.
A respiração ritmada.
As consciências prejudicadas, um pouco afetadas, ainda controlam a exposição dos desejos.
O tempo mudou.
Uma garoa. 
Coisa pouca. 
Umas gotas mal caídas do céu dispersam o encanto para suas opostas direções e encerram a história.
Uma garoa.
Coisa pouca.
Umas gotas mal caídas do céu.
FIM




segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

LIBERDADE DE IMPRENSA (nenhuma novidade)- Dorival Valente



Capela de São Miguel Aracnjo - SP
Em 1988 trabalhei em uma agência bancária em São Miguel Paulista (cidade de São Paulo). Havia um jornalzinho interno, editado por um funcionário antigo do lugar.
Um pouco depois da minha chegada esse funcionário saiu. Eu não sei como a responsável pela agência sabia que eu gostava de escrever. Fui convidado para assumir a redação do tal jornal. Aceitei acreditando que teria liberdade para escrever.
Minha primeira matéria foi sobre o aumento das mensalidades das escolas particulares. Muitos funcionários, na tentativa de criar mais oportunidades para seus filhos, eram clientes dessas instituições educacionais.
Acreditando que o jornalismo se baseia em isenção de opinião e demonstração de vários pontos de vista (nunca fui jornalista, nem estudei jornalismo, era apenas um amante dessa arte), montei um texto que demonstrava os problemas que o aumento causaria, como também a necessidade das escolas manterem seus bons professores e sua boa estrutura. Tentei não deixar transparecer minha opinião, apenas queria distribuir elementos para discussão. É claro que havia outras matérias sobre aniversários e casos engraçados e corriqueiros da agência.
O texto foi elogiado pela moça que me convidou. Antes de imprimir, porém, era necessária a aprovação do gerente da agência... Algumas escolas particulares eram correntistas daquela agência... 
As vezes que perguntei sobre a a aprovação recebia como resposta um cara fechada e o silêncio.
Aquela edição não foi impressa e nunca mais (até eu sair do banco) não se falou mais de jornal interno na agência de São Miguel Paulista.
Vivemos (não sei desde quando) uma época de muitos filtros.

Cada um desses filtros elimina o que considera tóxico.
Por quantos filtros passou a notícia que você lê/ouve/vê?
Por quantos filtros passam as suas opiniões?
PS: este texto passou pelos filhos do Artesão da Literatura que quer um maior número de acessos em sua página e uma maior venda de seus livros!


sexta-feira, 6 de setembro de 2019

CLEPSIDRA - DCV



É tanto tempo
Que o tempo me espera
Quanto tempo
É o tempo
Que eu espero o tempo.
Os dois em um aguardar
Sem tempo de parar

Talvez nossa dupla não saiba
Que o tempo
Aguardado
Já pode ter passado
Despercebido
Disfarçado
E nos deixou
Guardados
No aguardar do tempo.
06/09/2019

terça-feira, 20 de agosto de 2019

O Pedro e as pedras - DORIVAL CARDOSO VALENTE



Cidade de fato pequena; não tanto que nela não coubessem lá seus miseráveis, além dos seus milionários e um resto que não sabe que está longe do além e, também, teme e se nega estar perto de lá.
É fato que as pessoas surgem naturalmente como a terra sob os pés. Depois de surgidas é que se criam ou produzem dentro dos padrões patrocinados e, assim, se tornam o que são. Massa, depois de moldada e assada, dificilmente toma outra forma. O que acontece, mais do que esperam os patrocinadores, é que nem sempre o ceramista acerta a mistura e, ao invés de maleável, a matéria fica mais mole ou mais dura. O mesmo acontece com o pão. Um padeiro descuidado altera o sal, o gosto, o forno, a leveza e torna indisponível o produto para o consumo geral da população patrocinada.
Pedro é tido na cidade como um desses pães perdidos que não servem nem para pombos; uma argila misturada e moldada errada; um engano do Mestre. Todo preconceito cabia nele. Não espere que eu relacione esses preconceitos, você já os sabe, talvez até os utilize. A prova disso é que, provavelmente, você já pensou em três ou quatro características de Pedro.

Um dia, por um motivo fútil (como fútil é todo motivo) a cidade chegou a um limite e não suportou mais Pedro. Gritos tapas, socos, chutes, ofensas, cotoveladas presenteavam o corpo da massa mal moldada. Algumas pessoas utilizavam as mãos (que sempre recusaram carinho ou cumprimento ao Pedro) para atingir, com uma raiva desconhecida, a pele da personagem tão maltratada desta história.
Pedro não é um mártir ou um herói. Pedro tem medo. Fugiu como um covarde. Correu como nunca havia feito. E, também de forma inédita, a cidade corria atrás dele. Impossibilitados de alcançá-lo, começaram a jogar pedras que acertavam as costas, as pernas, a bunda, a nuca, o pescoço, a cabeça de Pedro.

Um buraco serviu como abrigo. Protegido quase por completo, Pedro recebia a dor de apenas uma ou outra pedra atirada com mais habilidade. Cansou, assim como se cansaram as pessoas da cidade. Todos, inclusive o alvo, foram dormir.
A madruga despertou a fome em Pedro. Umas árvores com frutos estavam perto. Ele subiu em uma pequena e comeu. Atento, o olhar voltado para a cidade percebeu uma multidão se aproximando. Não demorou muito e as primeiras pedras começaram a chover. A vítima correu para sua toca, assustado.
As pessoas da cidade não foram até onde ele estava. Olhar para Pedro já causava asco nelas, imagine vê-lo assim, ensanguentado. Ficavam a uma distância segura e jogavam as pedras que a pedreira descartou, as panelas que enferrujaram, o resto dos vasos que quebraram, um sofá destroçado. Houve até aquele, que imitando macaco de zoológico, tirou de si mesmo a munição e atirou no coitado.
Quando o céu escureceu e a cidade foi dormir, Pedro procurou por mais das frutas. Comia e olhava para a cidade. Não conseguiria viver assim por muito tempo, precisava de proteção. De quem?
Assim se repetiram alguns dias. Aos poucos a quantidade dos atiradores de pedras foi diminuindo, mas não acabou. Alguns jovens e atléticos estudantes transformaram a atividade de jogar pedras em Pedro em um esporte. Os mais habilidosos jogam, os mais estudiosos orientavam, os que não eram nada disso torciam por este ou aquele.

Pedro pensava como era possível uma pedreira dispensar tantas pedras boas.
Os governantes e os donos da cidade (que mandavam nos governantes) não apareciam nunca. A princípio, Pedro pensou que isso seria uma coisa boa, que os milionários iriam convencer o povo a parar com aquilo. O tempo mostrou que ele estava enganado.
O que os donos da cidade faziam enquanto o povo estava a atirar-lhe pedras?
Devem aproveitar o tempo para construir falcatruas, meditou.
Em tempos difíceis, a solução pode aparecer como uma palavra no meio de uma frase: Construir.
Tantas pedras em volta de Pedro que seria possível fazer um muro. E foi isso que ele começou a fazer.
Quando a população chegou na manhã seguinte e viu aquele murinho de poucos centímetros.
Estranharam! Murmurinhos sobre o murinho diziam que o governo mandou construir aquilo para que ficasse definido o limite máximo para que as pedras fossem jogadas e, assim, tornar mais justa a competição.
A cada noite, antes de iniciar o trabalho, Pedro subia na árvore mais baixa que ainda havia frutos. Comia sempre assustado e atendo, olhando para a cidade. O muro, a cada jornada, crescia de altura ou de largura.   
Na mesma proporção em que o muro de pedras crescia, a competição ficava mais difícil e o número de pedras atiradas diminuía. Pedro menos atingido, mais forte e protegido, trabalhava com mais vontade. Mais algumas noites e o muro estava tão alto e largo que nenhuma pedra mais vinha de além da muralha.
Desmotivado pelo muro, o povo se esqueceu de Pedro e, consequentemente, de lhe jogar pedras.
Um medo ou um susto não passam tão rápidos como as dores de um machucado.
Pedro não sossegou enquanto não murou toda a cidade. Um muro sólido.
Outra habilidade, que a necessidade o fez adquirir, era de subir em árvores. As frutas, agora, só nas mais altas. Um pouco mais seguro, Pedro subia, mesmo de dia, sempre com o olhar atento para
cidade.
Foi por curiosidade que um dia ele, no alto da árvore mais alta, olhou para onde sempre estava desvirado. Percebeu a amplitude do lugar e muitas, muitas, muitas outras distantes cidades. Ficou com medo de que nelas também houvesse pedreiras.
Desceu rápido e se escondeu no buraco.
Não havia mais pedras para protegê-lo de todas as cidades.
E as frutas das árvores acabaram.
A fome, a sede, o frio, a solidão... Tantas necessidades fizeram Pedro criar coragem e caminhar.
No caminho que não sabia, torcia para encontrar um lugar onde as pessoas fossem todas feitas de massas variadas. E que não o entendessem como uma argila que deu errado.
20/08/2019



segunda-feira, 22 de abril de 2019

A. C. Primeiro e Segundo Capítulos


            CAPÍTULO I
MANHÃ
De joelhos! A confissão já começou com uma penitência.
O Padre Gabriel pergunta quais são os meus pecados. Então, sou eu quem define o que foi e o que não foi pecado? A minha consciência é o meu confessionário? Para que estou aqui, então? Fico em silêncio, tentando classificar minhas ações, minhas opções, minhas escolhas. O que foi bom? O que foi mau? Colunas para “CERTO” e “ERRADO”. Todo erro é pecado?
- Quais são os seus pecados, filha?
 Será que o Gabriel está impaciente?
- Quando foi a última vez que se confessou? O que houve de lá para cá?
Silêncio!
- Dona Cecília, quais seus pecados? Os de sempre?
- Não! rompo o meu silêncio. Desta vez fui mais criativa!
Parece que minhas surpreendentes palavras o despertaram de uma monotonia monástica.
- O que houve?
- “O que houve?” Quer mesmo saber? Quanto tempo tem para me ouvir?
- A missa é daqui a três horas. Levo meia hora para me arrumar. Duas horas e meia... são suficiente? Peço para as outras pessoas que estão na fila irem embora?
Achei o tom da sua voz um tanto quanto irônico, mas não me ofendi. Permaneci calada. Olhei a fila. Duas velhas, perdão, senhoras. Isso foi pecado? O que fica na mente é pecado? Mas dizem que o mal é o que sai da boca e não o que fica no pensamento.
- Então, que tantos pecados a senhora cometeu?
- É que eu não sei!
- Não sabe? Não sabe o quê?
- Não sei se as coisas que eu fiz são ou não pecados. Agora percebo que, antes de vir me confessar, preciso de alguém que os ouça e avalie, para depois eu poder me confessar. A única certeza que tenho é que muito tempo nesta posição meus joelhos não aguentam.
- Estou ficando assustado e preocupado.
- Não precisa tanto. Não fiz nada de sobrenatural. Sou humana, limitadamente humana.
- Como é possível dúvidas? Se fez o certo, não pecou. Se fez o errado, pecou. Simples.
- Matar é errado. Certo?
- A senhora matou alguém?
- Não sei. Mas isto é só um exemplo. Ainda não falo de mim.
- Sim, matar é pecado.
- E se a pessoa mata alguém que tentava matá-la? Ainda assim é pecado?
- Pela lei foi legítima defesa...
- E para Deus?
- É preciso ver as circunstâncias. De qualquer forma, a pessoa tirou a vida de outra...
- Roubar é pecado?
- Sim.
- E se a mãe rouba um pão para alimentar um filho que morre de fome?
- Não há como culpá-la. Apesar da culpa.
- Mas ela pecou?
- Sim, ela pecou e merece o justo perdão quando fizer a confissão. A senhora roubou por necessidade?
- Não sei...
- Quem não sabe o que fazer sou eu... Há mais pessoas na fila. Pense, reflita, chegue a uma conclusão e depois venha.
- Mas eu preciso relatar tudo o que houve. Preciso da sua opinião sobre quando eu pequei ou não. Não há pessoa melhor que o senhor para avaliar isso. Há algum outro tempo e lugar para conversarmos?
- Hora disponível? Só a noite! Depois de todos afazeres da igreja, da missa. Depois de fechada a secretaria.
- Virei.
- Calma! Eu estava brincando.
- Eu, não.
- Virá?
- Virei.
- Nossa senhora! Faça assim, traga o seu marido junto.
- O que ele tem com isto?
- Para sua segurança... Para que não pensem coisas más...
- Virei só. Não me importa os outros.
- Se quiser que eu ligue para o seu marido e confirme que virá aqui ...
- Obrigada, não é necessário. Seu desespero é engraçado. Não posso ver seu rosto, mas imagino.
- A senhora é quem sabe. Então a espero. Que Deus a acompanhe!
Qual Deus me acompanha? Penso e não falo. Saio calada.
Esses confessionários não permitem ao pecador observar as expressões do confessor, enquanto contamos nossos erros. Imagino as expressões possíveis do Padre Gabriel. Pode ser que tenha ficado assustado, admirado, confuso. Sei apenas que não ficou normal. Seu tom de voz perdeu a entonação de tédio que sempre teve, que todo padre tem. O que será que está imaginando agora? Pensar isso me diverte.
Sempre fui Cecília para o Padre Gabriel, para o Padre João, Padre Inácio e tantos outros que passaram aqui antes dele. E também Cecília para todos aqueles que me conhecem desde menina. Creio que a maioria nem sabe que meu nome completo é Ana Cecília Eiras.
O fato de eu gostar mais de Ana do que de Cecília nunca importou a ninguém. Minha própria mãe não me chamava de Ana, sempre fui Cecília.
Eu mesma me apresentava como Cecília. De alguma forma eu entendia que ser Ana era um desejo e não uma realidade. Eu a reprimia em mim, mesmo antes de saber o que significava reprimir. Assim, todos sempre me conheceram como Cecília e nunca por Ana.  Acho que os nomes carregam uma energia própria e talvez a minha vida tivesse sido diferente, se todos me chamassem de Ana Cecília.
Cecília, a menina comportada!
Desde sempre me preocupei em não ofender ninguém, nem magoar. Falava menos que todas as meninas, e ouvia. Nem sempre entendia o que ouvia, mas ouvia. Ouvia com atenção. Isso gerou muitas amizades. É sempre bom ter alguém que nos ouça sem cobranças ou opiniões por perto.
Foi diferente com a Ana Clara!
Ela, também, Ana como eu. Melhor dizer, inversamente como eu!
 Todos a chamavam de Ana, quase ninguém sabia que era Clara. Espevitada como um garoto, jogava futebol misturada como um deles. Éramos vizinhas. Nas noites de não muito frio ou chuva, ficávamos sentadas no quintal da casa dela e contávamos, uma a outra/uma e outra, como havia sido o dia e o que achávamos das coisas todas.
Por sermos duas Anas, não pronunciávamos nomes em nossas conversas. Apenas éramos. Sem definições ou preocupações nominais.
Um dia a família dela se mudou.
Essa mudança me deixou muda. Não me lembro de mais ninguém, na época, que tivesse ouvido tanto a minha voz.






CAPÍTULO II
TARDE
As memórias talvez nos traiam. Os tempos idos talvez fiquem arquivados de maneira inconsequente, sem tampas ou ordem. É até provável que tudo esteja jogado e misturado. Nada do que fui é importante demais para ser etiquetado ou emoldurado. Os fatos se embaralham com o tempo e tudo parece ter acontecido junto, de uma só vez.
Acho que sempre fui a mesma, o tempo todo.
Creio que, por essa época, fiz a primeira comunhão e comecei a me confessar. Todo primeiro domingo do mês, falava das minhas ações pecadoras e infantis. Porém, guardava as minhas opiniões pecaminosas. “Não esconda nada, Deus tudo vê, tudo sabe!”, é o que diziam. E tudo parecia ser pecado!
Mas meus pensamentos... Eu nunca vi o pensamento de ninguém. Será que Deus poderia vê-los?  Ouvi-los?
Eu temia os Padres. Acreditava que eles eram seres sobrenaturais, que sabiam de todos os pecados que Deus poderia ter visto. Sabiam mais das minhas ações do que meus pais. Mas meus pensamentos ninguém sabia, a não ser Deus, se é que ele invadia minha mente.
Numa quermesse, eu tinha uns 15 anos, conheci um rapaz. Ele perguntou meu nome.
- Ana Cecília!
Nem sei por que eu falei assim. Talvez, para ele, eu não quisesse ser a mesma Cecília que todos conheciam.
- Ana?
- Cecília! Completei rápida, fazendo a correção.
- Ana ou Cecília?
- Qual você prefere?
Torci para que ele escolhesse Ana.
- Ana! É mais fácil.
- Sou Ana, então.
Foi nessa quermesse que dei meu primeiro beijo. Não namoramos e nem nos vimos de novo. Foi apenas um momento.
É claro que eu precisaria confessar o beijo. Deus viu!
No domingo, perdi a hora e não fui me confessar. Teria sido esse o propósito do meu inconsciente? Não pude comungar, não estava com a alma limpa.
Na hora da comunhão, todos comungaram cabisbaixos rezando. Fiz uma breve oração pedindo perdão a Deus e abri os olhos. Vi o Padre em uma atitude estranha. Com o dedo no céu da boca, desgrudava a hóstia. No catecismo ensinaram que isso era proibido, não poderíamos tocar na hóstia consagrada depois que ela entrasse na nossa boca. Meu dedo humano não poderia tocar o corpo divino de Cristo.
Mas a hóstia grudar no céu da boca do Padre... Um ser divino não deveria sofrer as banais ações humanas. Se o Padre enfrenta as limitações humanas, como ter a hóstia sagrada grudada no céu da boca... Eu percebi que ele não era um ser sobrenatural. Pela primeira vez, o Padre se mostrou como um ser humano para mim.
Depois da missa me confessei e não falei nada sobre o beijo e, o que é melhor, não me senti culpada, nem sofri uma penitência maior que a de sempre por conta do pecado visto por Deus e não sabido pelo padre.
Com o tempo vieram alguns namoros, que terminaram por motivos vagos. Coisa boba, sem riscos maiores que uns beijos mais afoitos sem sequências ou consequências.
Conheci o Joaquim quando tinha 19 anos. Outro namoro sem grandes aventuras, mas nos dávamos bem e combinávamos em muitas coisas. O tempo foi acontecendo numa rotina evolutiva normal para um relacionamento.  As famílias se conheceram e, aos poucos, ficamos cada vez mais compromissados.
Compromisso, obrigações e liberdades. Para Joaquim eu também era Cecília, a mulher que futuramente iria ser sua esposa.  Algumas vezes, sob luz fraca da varanda de casa, Cecília ia descansar e a Ana me tomava invisível e silenciosamente. Os desejos ultrapassavam os beijos e assustavam meu noivo. Não esqueço seus olhos arregalados e sua boca aberta enquanto guiava sua mão para meu seio. Nunca confessei isso aos Padres, nem Deus lhes contou.
Joaquim não falava sobre as noites de minha audácia. Com o tempo, ele se tornou mais atrevido e começou a explorar mais meu corpo, sempre na varanda mal iluminada e mantendo o silêncio no dia seguinte.
Uma vez, sem motivo maior que o tédio, tentei terminar o namoro. O garoto ficou apavorado e mostrou toda sua fragilidade emocional.
As duas famílias, a dele e a minha, vieram falar comigo. Estava eu, Cecília, doida? O que havia acontecido? Que idiotice era aquela?
Por que não perguntaram à Ana?
A opressão, a pena e o sentimento de culpa me fizeram reatar o compromisso.
Estava eu fadada ao tédio!
Vitória de Cecília! Que viessem a vida e a rotina de todos os casais.
Na maior parte do tempo, Ana hibernava. Raras vezes despertava. Como quando meus pais viajaram. Minha tia, que ficou para me fazer companhia, dormia profundamente no sofá. Então, por decisão e opção de Ana, e não de Joaquim, perdi a virgindade. Minha dorminhoca tia não percebeu, O casamento já marcado e o sexo, entre nós, me pareceu uma consequência natural; uma antecipação do futuro. Depois disso procurávamos, mesmo sob a luz do sol, recantos isolados e momentos solitários para nos divertirmos.
Quando ia me confessar, pensava em contar. Sempre me voltava o mesmo pensamento: Deus viu e sabia. Nunca contei. Se era realmente errado, o Todo Poderoso, que tudo sabe e tudo vê, poderia cochichar na mente dos Padres, para que eles me repreendessem. Se Deus lia meus pensamentos e via meus atos, nunca disse nada pela boca dos Padres ... Sentia-me, assim, perdoada.
E por que, agora, quero me confessar?
Fico aqui conversando, em pensamento, não sei com quem. Esquizofrenia ou só esquisitice mesmo?
Quem é você que vai, aos poucos, sabendo mais de mim do que qualquer outra pessoa que eu conheça? Com quem falo? Qual seu nome? Qual a sua história? Qual seu tédio? Qual o seu pecado?
Desde que a Ana Clara se mudou, tenho isso de falar sozinha. Falar em pensamento, para que Deus não ouça, não saiba, não me culpe. É como se alguém (que eu chamo de você) estivesse aqui ao meu lado, ceciliamente calado e me ouvindo.
Paranoia? Telepatia?
Mas falo e não te ouço. Você, meu ouvinte mudo, já não me satisfaz totalmente. Por isso decidi contar tudo o que houve, nesses últimos anos ao Padre. Os psicólogos me assustam e podem detectar alguma patologia, não quero me saber doente, nem me curar. Não quero a ciência me revelando. Quero o místico, o Divino, a ilusão criada e misturada com o humano.
Abro a porta e me abasteço com uma taça com vinho. Um relaxamento breve antes de iniciar a rotina da casa e do jantar.

sábado, 16 de março de 2019

SUZANA


(se for possível, deixe a música tocando enquanto lê o texto)

O celular desperta. Cinco e trinta. As mãos, mecanicamente, pedem mais cinco minutos. Adormece.
Nem um minuto depois, acorda.
A noite foi eterna. Nem sabe a hora em que conseguiu dormir. O tempo é estranho, pois não é igual para todos. Ela lembra de seus quatorze anos: os sonhos, as brincadeiras de meninas, os serviços de casa, a escola, as aulas, o pensamento solto, as preocupações das notas, os finais de semana eram tão distantes. Um ano demorava um século para passar, mas havia a certeza de ele passaria e ela estaria lá.
O alarme do celular toca novamente. Ela o desliga. Esqueceu de desativar o alarme. Esqueceu-se de muitas coisas.
Não é bem um esquecimento. É um não se importar. Não fez o jantar, que importância isso tem? Não colocou o lixo para fora, que mal isso faz? Não deu descarga quando foi fazer xixi, quem vai saber? Não ligou a televisão a noite, quem vai sentir falta da novela? Não vestiu a camisola, que mal há em dormir com a vestimenta do dia? Não tirou a roupa da máquina de lavar, quem precisará delas? Não jantou, quem se importa? Mas poderia ter dado comida ao cachorro. Coitado, não tem culpa. Parece até que compreendeu. Os animais sentem quando algo ruim acontece, nem latiu. Chorou um pouco quando chegou. Só!

Puxa vida! 
Deveria ter desligado o alarme do celular. Demorou tanto para dormir. Acordar cedo para quê? Acordar para quê?  Ela não vai chorar novamente. Depois de muitas lágrimas parece que o corpo fica anestesiado. A dor, e ela sabe que ainda dói, amolece os músculos do corpo. O desespero leva o pensamento para longe. Talvez, se ela tomar o calmante que a vizinha trouxe, até consiga dormir. Dormir para quê?
Senta-se com os pés fora cama como todos os dias, um pouco mais tarde do que a rotina. Ainda duvida da necessidade de se levantar. Observa o cachorro deitado sob o batente da porta. Pensa na fome que ele deve ter e sente dó. Como é que os animais sabem da dor dos seus donos? Não latiu a noite inteira. Só chorou um pouco quando ela chegou. Normalmente ele não fica ali. Dorme no quarto do menino. Hoje veio para cá. Como ele sabe que a dor dela é maior que a dele? Será que é?
- Acorda, você precisa comer!
Ela se levanta, nem sente as dores nos pés ou nas costas. Calça os chinelos, por costume, e caminha para a cozinha. O cachorro a segue, enroscando em seus passos. Não abana a calda, nem late. Sabe que vai comer e, provavelmente, está feliz por isso, mas contém seus gestos. Como sabe?
- Hoje seu café é sozinho. O menino não virá te fazer um carinho.
As orelhas baixas. O olhar triste. A resignação.
- Nem hoje, nem nunca mais!
As lágrimas, que estavam esgotadas, ressurgem. Ressurgirão ainda por um bom tempo.
Tempo longo que ela não sabe mais contar ou entender.
Tempo maior que o neto teve.
Tempo que não se entende.
Por quê?



terça-feira, 22 de janeiro de 2019

A FILOSOFIA E O AMOR - (do livro: Palavras Que Contam)



A priori, ela me deu um beijo sem mais nem por quê. Afinal, a boca não serve apenas para expressar palavras inventadas pelo homem e que não são, necessariamente, a realidade.
Após a agradável experiência com sua língua, pergunto o seu nome. “Marilena, estudante de filosofia.”
Ela pergunta meu grau de instrução e eu concordo e comento que o dia está realmente bonito.
Passamos a uma animada conversa sobre Hegel, que terminou quando ela me perguntou as horas. Respondi que não sabia, pois meu relógio de sol estava parado. Eu havia me esquecido de dar corda na terra.
Ela não gostou da piada e quis ir embora. Marcamos um encontro para o outro dia, na biblioteca.
Entre óculos reconheci seus livros. Sentei-me ao seu lado e juntos viramos mais de vinte páginas de Foucault.

Da biblioteca fomos ao Municipal. Seria um concerto para piano, que não ocorreu, pois o maestro estava quebrado.
A posteriori, partimos para sua cama de lençol pautado. Ela tirou os óculos e eu parei de pensar.
Resolvemos morar juntos e decidimos pelo meu apartamento: a estante era maior.

Estávamos, dialeticamente, num relacionamento interessante.
Durante a semana eu saía para o escritório, enquanto ela lia Sartre. À noite eu fazia a janta, ouvindo-a ler Platão.
Na cama discutíamos Nietzsche, até um dos dois dormir.
Nos finais de semana, enquanto eu dormia, ela lia Kant. Quando acordava, era ela quem dormia.
Tudo ia bem...
Mas certo dia...
Ao chegar em casa...
Ela guardava seus livros numa mala.

Iria embora.
Eu perguntei o porquê. Ela respondeu que já havia lido todos os meus livros.
Colocou o chapéu e uns óculos que eu ainda não conhecia.
Abriu a porta. Deu o primeiro passo para o elevador.
Desesperado, insisti, querendo saber do nosso amor materialista. A sua resposta foi que nada neste mundo existe, a não ser uma massa pensante. O resto, concluiu, são ilusões criadas por um gênio maligno.
Saiu.  Fechou a porta e me deixou cogitando sozinho.


quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Na Fazenda



O bezerro, que ainda não sabe e nem precisa respeitar as porteiras, vem feliz do passeio.
Nós, as vacas e os bois, entediados com nossos destinos, estranhamos a felicidade. Queremos saber de onde ele vem e o que lhe faz ter esses olhos de esperança.
Será que achou grama nova? Será que o rio está mais limpo, raso e fresco? Será que nasceram mais árvores? Será que as alfaces ou os patos viraram moda na mesa dos humanos? Será que o verão está no fim? Será que o inverno não virá? Será que a primavera terá menos pólen no ar? Será que o outono será mais verde?
O bezerro não sabe nada disso.
O que sabe, então?
Ele estava, como sempre, distraído, perto de onde estavam os humanos. Viu e ouviu alegrias.
Alegrias?

Sim, alegrias! E elas não eram por causa dos próprios humanos. As alegrias foram motivadas pelo rebanho.
O rebanho? Nós?
Sim, nós, o rebanho!
Pelo que o bezerro entendeu, estamos (nós, o rebanho) valorizados. Nossas qualidades passaram fronteiras. As ações até subiram e bateram recordes (isso ele apenas ouviu e repetiu sem saber explicar o que é ou como funciona). Será um novo tempo para os bovinos! Seremos donos do nosso destino (profetizou). Muitos de nós vibram.

Longe do tumulto, andando de um lado para ou outro (para se manter magro e vivo) o boi velho, pensativo, diz que é preciso cuidado quando os fazendeiros estão felizes. As alegrias dos fazendeiros nunca são boas para o rebanho.
Alguns entendem e concordam. Poucos repetem as palavras do mais sábio dos bois. Mas a maioria diz que ele está ultrapassado e só sabe torcer contra.

A maioria está feliz e esperançosa com as alegrias dos fazendeiros. Acreditam piamente que um novo destino está nascendo para os bovinos.
A poucos metros dali, as portas do matadouro recebem nova graxa e os ganchos são afiados.