garoto está na sala
ouvindo música. O Tio entra.
TIO - Luís, preciso ter uma conversa séria com você.
LUÍS – O que houve, Tio?
TIO – Ontem você comeu a cobertura do bolo de chocolate que
a sua Tia fez?
TIO – Mas viram você comendo...
TIO – Não se faça de desentendido. O bolo de chocolate que a
sua Tia fez.
LUÍS – É, ontem ela disse que iria fazer um bolo de
chocolate. Mas eu não comi.
TIO – Você tem como provar que não comeu?
LUÌS – Como que é????
TIO – Você tem provas concretas de que não comeu o bolo?
LUÌS – Como posso comprovar uma coisa que não fiz? Que tipo
de prova o senhor quer?
TIO – Luís, você está me tirando do sério!
LUÍS – Tio, eu não comi o bolo. Mas seu eu tivesse comido,
assumiria. Acho que nem aguento comer um bolo inteiro.
TIO – Não foi inteiro. Foi um pedaço. Um pedaço da
cobertura.
LUÍS – O senhor tem alguma prova de que eu fiz isso?
TIO – Eu não preciso de provas para saber que a culpa é sua.
Mas, para seu governo, sim eu tenho provas.
LUÍS – Uma foto, um vídeo?
TIO – Nada disso.
LUÍS – Achou mancha de chocolate na minha roupa?
TIO – Não.
LUÍS – A minha boca está suja de chocolate?
TIO – Sim, está.
Luís olha-se no espelho.
LUÍS – Não, esta mancha não é do bolo. Um amigo que me deu
um doce. Aliás essa mancha nem é de chocolate. É de morango.
TIO – Não é chocolate?
LUÍS – Veja o senhor mesmo.
Luís limpa a mancha perto da boca.
LUÍS - Veja é
vermelha e o sabor é de morango. Quer provar – diz oferecendo um dedo.
TIO – Não! Claro que não. De jeito algum quero me envolver
nessas sujeiras dos seus amigos.
LUÍS – Mas meus amigos são também amigos dos seus filhos:
Miguel e Renato.
TIO – Não misture as coisas nem as pessoas.
LUÍS – Que se dane. Pronto o caso está resolvido. O senhor
não tem provas que eu comi o bolo. A mancha no meu rosto era de morango e não
chocolate.
TIO – Calma, mocinho! Eu não disse que essa era a prova. As
provas são outras.
LUÍS – Que provas?
TIO – A vizinha ai da frente.
LUÍS – Ela me viu comendo o bolo?
TIO – Ver? Não. Ver ela não viu.
LUÍS – Então como ela pode dizer uma coisa dessas?
TIO – Ela ouviu de outra pessoa que você comeu o bolo.
LUÍS – De quem?
TIO – Da mãe dela.
LUÍS – A mãe dela me viu comendo o bolo.
TIO – Ver? Não, ela não viu. Mas soube por outra pessoa que
você comeu o bolo.
LUÍS – Isto está se tornando repetitivo e cansativo. Quem,
afinal de contas, me viu comendo o bolo?
TIO – A mãe da vizinha ouviu da vizinha aqui do lado direito
que você comeu o bolo.
LUÍS – Ela viu?
TIO – Também não. Ela soube quando encontrou o Cunhado que
queria oferecer um pedaço de um bolo de chocolate que ele dizia ser do bolo de
chocolate que sua Tia fez.
LUÍS – E o que ele fazia com o bolo que a Tia fez.
TIO – Nada. Ele não estava com o bolo. Ele falou na intenção
que a vizinha do lado direito quisesse comprar. Então ele iria propor comprar
mais barato da sua Tia e revender para ela.
LUÍS – E como ele soube do bolo que a Tia fez?
TIO – A sua Tia foi ao mercado. Pelos ingredientes que
pegou, a moça do caixa perguntou se ela pretendia fazer um bolo de chocolate.
LUÍS – Onde eu entro nessa história?
TIA – Você está mais encrencado do que pensa, rapaz. A sua
Tia disse que, ela pretendia fazer um bolo de chocolate. A moça sugeriu que ela
levasse chocolate granulado para a cobertura.
LUÍS – O que é que eu tenho haver com isso?
TIO – Calma que eu te explico. Com o que eu vou falar agora
você não terá escapatória e terá de assumir.
LUÍS – Diga.
TIO – A sua Tia disse para a moça que não iria levar o
chocolate granulado porque você, entendeu bem?, porque VOCÊ LUÍS sugeriu que
sua tia fizesse a cobertura com um creme de chocolate com avelã.
LUÍS – Não me lembro disso.
TIO – Quer dizer que sua Tia é mentirosa.
LUÍS – Eu não disse isso.
TIO – Quer dizer que todo mundo é mentiroso: Sua Tia, a
vizinha da direita e o cunhado dela, a vizinha da frente e a mãe dela, a moça
do caixa. Todos mentem, menos você.
LUÍS – Calma, Tio. Não é assim também! Sabe, puxando pela
memória eu me lembro que quem sugeriu isso para a Tia foi um amigo meu... Eu só
estava do lado.
TIO – Um amigo? De novo?
LUÍS - Não tenho
culpa de ser bem relacionado... Mas o
que tem o fato de eu sugerir a cobertura com o outro fato de eu comer o bolo.
TIO – A SUA TIA DISSE QUE FOI VOCÊ QUEM SUGERIU A COBERTURA.
LUÍS – Tudo bem, tudo bem, eu posso até ter sugerido. Mas
entre sugerir e comer um pedaço da cobertura do bolo... não vejo ligação.
TIO – Luís, não queira me fazer de idiota. Para que você
iria sugerir a cobertura se não fosse para comer?
LUÍS – Eu posso até ter pensado em comer o bolo...
TIO – Finalmente admite!
LUÍS – Não estou admitindo nada. Eu apenas sugeri e sai.
Cheguei em casa só hoje. E não há mais bolo algum. Nem vi como ficou o bolo.
TIO – Então por que a caixa disse ao cunhado da vizinha da
direita que a sua Tia iria fazer um bolo para você comer?
LUÍS – Eu não sei.
TIO – E por que ele foi sugerir que a vizinha da direta
comprasse um pedaço do bolo que sua Tia fez para você?
LUÍS – Não tenho a menor ideia! Você disse que ele queria
ganhar algum dinheiro vendendo pedaços de bolo.
TIO – Então me diga, qual o motivo que fez a vizinha da
direita contar para a vizinha de frente que a sua Tia fez um bolo para você
comer a cobertura?
LUÍS – Seu eu disser que estou cada vez mais entendendo
menos, o senhor acredita?
TIO – Não entende, não é? Calma, estamos chegando no senhor.
Explique uma coisa: por que uma mãe... as mães sempre estão acima de qualquer
dúvida, por que uma mãe contaria a sua filha que a uma certa Tia fez um bolo
para um certo sobrinho comer a cobertura?
LUÍS – Qual a sua opinião?
TIO – Minha opinião é uma só. Minha opinião é de que ela
disse porque isso por ser essa a verdade.
TIO – Quem bebe aqui é você! Não se esqueça disso.
LUÍS – Pode deixar que não me esqueço! Aliás, tô precisando
tomar umas pra ver se entendo alguma coisa disso tudo que o senhor falou.
Tchau.
Luís levanta-se e sai da sala ao mesmo tempo em que sua Tia
entra pelo outro lado.
TIA – De novo implicando com o garoto?
TIA – Desse jeito logo ele se muda daqui.
TIO – Meu sonho é colocar ele e aquela companheira dele para
fora daqui.
TIA – A companheira dele veio para cá democraticamente.
TIO – Democraticamente nada. Eu votei para ela não ficar.
TIA – Mas a maioria escolheu a permanência dela.
TIO – Isso é culpa do pessoal lá de cima. Uns idiotas!
TIA – Olha lá como fala deles!
TIO – A casa é minha e eu falo como eu quiser.
TIA – A casa não é sua, é de todos. E vou te dizer uma coisa
se não fossem todos os moradores dos outros andares trabalharem e darem quase
todo o dinheiro para nós, não sei como estaríamos.
TIO – Não fazem mais que obrigação! Bando de vagabundos! Não
sei como permito que gastem todo o dinheiro deles conosco. Fazer o que? Nem
todos podem ter pensão na França ou na Suíça.
TIA – Não sei o porquê fala assim. Seus filhos, Miguel e
Renato, são mais vagabundos que eles e você não pensa em se livrar deles. Pior
dá a eles uma vida de luxo e luxúria.
TIO – Você fala como se não fossem seus filhos também.
TIA – E não são mesmo. Você se esquece que eles são filhos
seus com aquela moça que usa farda. Nossa que horror de mulher, não deixa
ninguém falar, só ela.
TIO – Você também tome cuidado. Não me perturbe muito, senão
trago ela de volta e você retorna ao seu posto de empregada muda, sem salário
nem aposentadoria.
TIA – Isso é chantagem! Tá bom eu me calo sobre isso.
TIO – Não se cale. Diga. O Luís comeu a cobertura do bolo,
não comeu?
TIA – Não.
TIO – Não de não comeu?
TIA – Não, é “não” de não digo.
TIO – Por favor diga.
TIA – De jeito algum.
TIO – Se você disser o que sabe, eu te compro um micro-ondas
novo.
TIA – É sério isso?
TIO – Seríssimo.
TIA – Escreva essa promessa num papel e assine.
O Tio escreve e assina. Entrega o papel para a Tia.
TIO – Pronto. Agora diga.
TIA – O bolo de laranja, O Miguel comeu sozinho. O bolo de
limão, o Renato acabou com ele. Aquele bolo enorme de abacaxi com ameixa, o
cunhado da vizinha da direita levou daqui e não sei onde o guardou ou o que fez
com ele. A mulher do cunhado, a irmã da vizinha da direita é que foi vista
desfilando com um grande pedaço de bolo de abacaxi com ameixa na mão.
TIO – Isso não me interessa. Quero saber se o Luís comeu ou
não um pedaço da cobertura do bolo de chocolate.
TIA – Para quê?
TIO – Assim posso expulsá-lo daqui.
TIA – Você também vai expulsar todos esses que comeram bolo?
TIO – Não, só o Luís. Estou me lixando com esses outros
comedores de bolo. Se comeram é que são mais espertos que os outros. Parabéns
para eles. Vou até dar uma festa para comemorar a esperteza deles.
TIA – Oba, festa! Vai chamar todo mundo?
TIO – Você é idiota? Claro que não. A festa será apenas eu,
você, o Miguel, o Renato e os amiguinhos deles. Agora conta, o Luís comeu ou
não comeu a cobertura do bolo de chocolate.
TIA – Você quer a verdade?
TIO – A mais pura verdade.
TIA – Não. Ele não comeu!
TIO – Como assim ‘NÃO!”?
TIA – O Luís até comentou que gostaria do bolo. Mas ele saiu
antes do bolo ficar pronto.
TIO – Mas ele comeu quando voltou?
TIA – Também não. Quando terminei o bolo e o levei inteiro
para a moça do mercado e deixei com ela.
TIO – Por quê?
TIA – Porque quando eu falei do bolo ela ficou curiosa, além
disso o Miguel e o Renato Já haviam comido um bolo inteiro cada um. Satisfeito
agora?
TIO – Vou te comprar uma geladeira se você disser que o Luís
comeu um pedaço da cobertura do bolo.
TIIO – Certas horas “a mais pura verdade” só atrapalha a
nossa vontade.
TIA – A geladeira pode ser tríplex?
TIO – Pode!
Cai o pano.
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