A priori, ela me deu um beijo sem mais
nem por quê. Afinal, a boca não serve apenas para expressar palavras inventadas
pelo homem e que não são, necessariamente, a realidade.
Após a agradável experiência com sua
língua, pergunto o seu nome. “Marilena, estudante de filosofia.”
Ela pergunta meu grau de instrução e eu
concordo e comento que o dia está realmente bonito.
Passamos a uma animada conversa sobre
Hegel, que terminou quando ela me perguntou as horas. Respondi que não sabia,
pois meu relógio de sol estava parado. Eu havia me esquecido de dar corda na
terra.
Ela não gostou da piada e quis ir
embora. Marcamos um encontro para o outro dia, na biblioteca.
Entre óculos reconheci seus livros.
Sentei-me ao seu lado e juntos viramos mais de vinte páginas de Foucault.
Da biblioteca fomos ao Municipal. Seria
um concerto para piano, que não ocorreu, pois o maestro estava quebrado.
A posteriori, partimos para sua cama de
lençol pautado. Ela tirou os óculos e eu parei de pensar.
Resolvemos morar juntos e decidimos pelo
meu apartamento: a estante era maior.
Estávamos, dialeticamente, num
relacionamento interessante.
Durante a semana eu saía para o
escritório, enquanto ela lia Sartre. À noite eu fazia a janta, ouvindo-a ler
Platão.
Na cama discutíamos Nietzsche, até um
dos dois dormir.
Nos finais de semana, enquanto eu
dormia, ela lia Kant. Quando acordava, era ela quem dormia.
Tudo ia bem...
Mas certo dia...
Ao chegar em casa...
Ela guardava seus livros numa mala.
Iria embora.
Eu perguntei o porquê. Ela respondeu que
já havia lido todos os meus livros.
Colocou o chapéu e uns óculos que eu
ainda não conhecia.
Abriu a porta. Deu o primeiro passo para
o elevador.
Desesperado, insisti, querendo saber do
nosso amor materialista. A sua resposta foi que nada neste mundo existe, a não
ser uma massa pensante. O resto, concluiu, são ilusões criadas por um gênio
maligno.
Saiu. Fechou a porta e me deixou cogitando sozinho.