Ela sentiu que o
suspiro foi mais longo, completo e definitivo. Não havia mais ar nos pulmões. A
escuridão era plena. Ainda ouvia algumas vozes. Identificou a Irmã Adelaide
decretando que não adiantava mais nada, o sofrimento acabara. Estava morta!
Então se fez silêncio!
Não sentia mais o corpo. Primeira sensação foi de paz e de dever cumprido.
Agora era esperar a companhia dos anjos e ir para o Senhor.
Uma vida dedicada à
Deus deveria garantir seu lugar no céu. Vivera sem luxo, sem posses, sem
ambições, sem planos pessoais, sem cometer o pecado carnal apesar de todas as
tentações do mundo. Pura e imaculada serviu aos necessitados e aos
descaminhados.
Onde estariam os anjos?
Será que eles não virão? Esqueceram-se dela? Justo dela? Perderam a hora?
A sensação é de não
poder fazer mais nada. Agora era apenas passageira do próprio destino. É justo
ir para o céu, afinal abriu mão dos sonhos, controlou seus arroubos e seus
desejos para este momento: A hora da morte!
Um cético professor de
ciências, no colégio, falou uma vez que essa tal hora da morte só dura quatro
minutos. Nas palavras dele, esse é o tempo que o cérebro resiste sem receber
novas cargas de oxigênio. Tolo! Esse professor estava preso à lógica prosaica,
ao físico, à matéria.
Ela sempre fora um
instrumento nas mãos de Deus. Agora iria para Seus braços...
Isso se os anjos
chegassem a tempo! Por que estariam judiando dela dessa forma? Qual o pecado
que havia cometido? Sempre fez o correto, o certo, o preciso.
Quatro minutos! Seria
esse o tempo no purgatório? Mas dela não há o que julgar. Reservou seu lugar ao
lado de Deus e pagou caro, antecipado e com a própria vida. É a hora da morte e
Ele sabe tudo.
Houve falhas, claro!
Não postulava santidade. Houve aquele menino na adolescência. Os beijos, a
permissão dos seios, a mão curiosa, o medo e o desejo confundindo a fé. Mas a
vocação foi soberana e isso que é importante. Houve recaídas, desejos de sexo,
solidão das mãos. Culpas já penitenciadas. Está sem dívidas divinas. Já foi paga
também a soberba de se achar mais capaz que a madre superiora, aquela incapaz
da Irmã Elsa.
Cadê os anjos? Será que
seria ela a incumbida de por ordem no céu? Se for assim determinará que os
anjos se apresentem às almas libertas e justas já no primeiro minuto da morte.
E se eles não vierem?
E se eles não
existirem?
E se forem apenas os
quatro minutos de oxigênio no cérebro e nada mais? A ciência cética sem anjos,
sem céu, sem Deus?
Será que Deus não
existe?
Será que Deus não
existe?
Como gostaria de poder
gritar, de ter uma última resposta...
Cadê a droga desses
anjos? Será que Deus não existe?
Dos quatro minutos
quantos ainda faltam?
Deus?!?!?!?!?!
De que valeram tantas
rezas e tanta paciência? Abandonou a família, os amigos. O Fernando!
Deixou de ter vida.
Abriu mão de marido e filhos. O pior, permaneceu virgem. Virgem! Ah, como teria
sido sentir os plenos prazeres do sexo? Deus, teria sido bom!
Sentia agora
inveja das prostitutas que sempre auxiliou, condenou, criticou e... o que é
pior... invejou. Algumas para provocar lhe contavam detalhes como se ela fosse
uma delas e depois choravam pedindo perdão.
Quem perdoava não era
ela. Era Deus através da consciência e das palavras do Padre Amaro, que sabia
toda sua vida e seus pensamentos imaturos, impróprios, impuros.
Definitivamente não há
anjos! Não há Deus!
Quantos segundos ainda?
Ódio, inveja, luxúria,
gula, egoísmo. Queria tudo agora.
Todos os sonhos, todos os desejos, todas as
delícias. Tudo, tudo, tudo... Se ainda houvesse ar nos pulmões gargalharia alto
para o mundo ouvir e choraria bem baixinho, quase sussurrando, só para ela
mesma. Choraria todos os arrependimentos de uma vida perdida. Mas os pulmões
estão secos e o sangue já não circula. Resta um nada de pensamento, uma
Ave-Maria agora e na hora de nossa morte, amém!