(Para: Leomaristi)
Entre a passagem de som e a apresentação, quase uma hora. Os
técnicos ajustam o de sempre, ajudantes arrastam cabos daqui pra lá e de lá pra
cá. No vidro redondo o whisky derrete o gelo.
Vento na minha nuca. Olho para trás. O imponente mosteiro guarda
minhas costas. Nele a janela por onde o Papa olhou as ruas de São Paulo.
Provavelmente ele nem viu mesmo as ruas. A multidão cobria
qualquer geografia urbana. Creio que, como um príncipe, ele ficou encantado. Eu
não estava aqui, mas vi numa reportagem da televisão.
O Papa não viu as minhas ruas de São Paulo. Estas aqui onde
foi montado o palco e que eu percorria apressado ouvindo as batidas do São
Bento.
Dim-dôm-dôm-dómm
Dôm-dôm-dôm-dómm
Dim-dôm-dôm-dómm
DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM-
DÓOMM- DÓOMM
Doze horas batia o São Bento!
As pessoas caminhavam. A mim não importava para onde iam, o
importante é que elas caminhavam para todos os lados, apressadas. O Largo,
bilhetes da federal, pessoas em trapos, esmolas em moedas, graxa a quinhentos,
frutas a mil, medo de graça, gravatas, saias, calcinhas, meias, paletós,
decotes.
Se eu estivesse com pressa não pararia na roda, não ouviria
o discurso de Jeová, não descobriria o engano das cartas, não sentiria o pó da
erva que queima, não teria percebido as pessoas.
Estudantes riam dos perdidos. Os velhos abriam suas bocas e
dentaduras para falar das suas doenças e do seu tempo, que não era aquele.
Garotas se sentiam como modelos e faziam poses. Garotos deixavam a mão boba. O
apaixonado esperava a musa que havia perdido a hora, o dia ou a paixão.
Namorados brigavam e beijavam. Eu assistia a tudo.
Mudava de ares. Rua São Bento. A correria do almoço. Lojas
cheias, travessas apertadas, bares lotados. O Hare-Krishina parava quem podia.
A mudinha gritava agradecendo a esmola (eu acho). Um anão tocava um pandeiro ao
lado do senhor do realejo. Gotas de água de um ar-condicionado imitavam as
pombas e caia na cabeça dos desconfiados. Amigos num café. Alguém com pressa e
bravo porque não pode andar rápido. Barulho de passos calçados e não de gente.
Uma vez alguém passou sozinho, sorrindo felicidade. Achei
estranho: como seria feliz se estava envolto nesses pedintes, trombadinhas,
nessas injustiças, no medo que era o país?
Noutra vez um rosto apaixonado, suspirando. Fiquei
indecifrado. Naquele tempo, o amor, para mim, era tão passageiro e indefino
quanto eterno e confiável. Seria medo da solidão? Seria incapacidade de
realização material? Seria apenas amor?
Meus pensamentos sempre foram contraditórios.
Quando passava uma pessoa chorando eu me perguntava como é
que alguém pode ficar triste no meio de tanta beleza. Pessoas que passavam
alegres, sorrindo. Uma música bonita que vem de dentro das portas ou dos
cantores de rua servia como trilha sonora. Palhaços nas lojas me faziam rir.
Pessoas tropeçavam e caiam engraçados ou quase. Tanta alegria, como deixar a
lágrima cair?
Gestos gentis de pessoas educadas eu achava farsa. Tudo era
engodo para nos manter civilizados. O ser humano natural não precisava desse
manto social. Meu olhar crítico declarava que éramos egoístas, relaxados,
loucos, esquisitos, imundos...
Milhares de pensamentos, contradições, imagens, lembranças.
Na Rua Direita, frutas poluídas, geladeiras, calças jeans,
máquinas de lavar. Como era boa a vida na civilizada.
Nas bancas os assuntos que não terminavam, os que nunca
começavam, os proibidos, os seios cobertos por papel vermelho, opiniões em
fascículo, a alienação dos não alienados, a oposição dos que não querem mudança,
o futebol e Ayrton Senna.
Depois XV de Novembro, Boa Vista, cartórios, bancos,
fliperama. Eu não me perguntava mais nada, nem reparava em sapatos ou jornais.
A pressa era minha companhia. Treze horas batia o São Bento e eu nem percebia.
Hoje, sobre este palco, vejo as ruas de um jeito que não
via.
A Florêncio de Abreu numa curva elegante com a Boa Vista. O
Largo estreito e o viaduto da Santa que eu chamava Ingênua, mas é Ifigênia. A
São Bento é uma enorme calçada feita de atropelos. A Líbero Badaró parece que
foi esquecida pelo tempo.
Aos poucos o povo chega. O que era cimento, pedra, calçada
ou asfalto, vai se tornando cabeças. Não há mais ruas.
Vejo o prédio rosa e me sinto tão enorme como o Martinelli e
tão encantado como o Papa.
Abaixo a cabeça e faço dobrar meu baixo para que meu suor
agradecido e seu soar enaltecido sejam percebidos pelo Mosteiro, pelas ruas,
pelas cabeças, pelo centro da minha cidade.
Gostei do seu texto. Muito poético. Abraços
ResponderExcluirObrigado por ler e comentar. Que bom que gostou.
ResponderExcluirObrigado por ler e comentar. Que bom que gostou.
ResponderExcluirMuito bom o texto! Reflete a alma da Desvairada com muito critério!
ResponderExcluirAdorei o texto. Não conheço São Paulo, a não ser através dos relatos dos seus moradores. E, pelo visto, a cidade é um verdadeiro caldeirão de gentes e culturas, onde as pessoas correm literalmente, o tempo todo.
ResponderExcluirCorrem mesmo, Sueli. Um formigueiro
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