segunda-feira, 8 de junho de 2015

Leo

(Para: Leomaristi)
    

Entre a passagem de som e a apresentação, quase uma hora. Os técnicos ajustam o de sempre, ajudantes arrastam cabos daqui pra lá e de lá pra cá. No vidro redondo o whisky derrete o gelo.
Vento na minha nuca. Olho para trás. O imponente mosteiro guarda minhas costas. Nele a janela por onde o Papa olhou as ruas de São Paulo.
Provavelmente ele nem viu mesmo as ruas. A multidão cobria qualquer geografia urbana. Creio que, como um príncipe, ele ficou encantado. Eu não estava aqui, mas vi numa reportagem da televisão.
O Papa não viu as minhas ruas de São Paulo. Estas aqui onde foi montado o palco e que eu percorria apressado ouvindo as batidas do São Bento.
Dim-dôm-dôm-dómm
Dôm-dôm-dôm-dómm
Dim-dôm-dôm-dómm
DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM- DÓOMM

Doze horas batia o São Bento!
As pessoas caminhavam. A mim não importava para onde iam, o importante é que elas caminhavam para todos os lados, apressadas. O Largo, bilhetes da federal, pessoas em trapos, esmolas em moedas, graxa a quinhentos, frutas a mil, medo de graça, gravatas, saias, calcinhas, meias, paletós, decotes.
Se eu estivesse com pressa não pararia na roda, não ouviria o discurso de Jeová, não descobriria o engano das cartas, não sentiria o pó da erva que queima, não teria percebido as pessoas.
Estudantes riam dos perdidos. Os velhos abriam suas bocas e dentaduras para falar das suas doenças e do seu tempo, que não era aquele. Garotas se sentiam como modelos e faziam poses. Garotos deixavam a mão boba. O apaixonado esperava a musa que havia perdido a hora, o dia ou a paixão. Namorados brigavam e beijavam. Eu assistia a tudo.
Mudava de ares. Rua São Bento. A correria do almoço. Lojas cheias, travessas apertadas, bares lotados. O Hare-Krishina parava quem podia. A mudinha gritava agradecendo a esmola (eu acho). Um anão tocava um pandeiro ao lado do senhor do realejo. Gotas de água de um ar-condicionado imitavam as pombas e caia na cabeça dos desconfiados. Amigos num café. Alguém com pressa e bravo porque não pode andar rápido. Barulho de passos calçados e não de gente.
Uma vez alguém passou sozinho, sorrindo felicidade. Achei estranho: como seria feliz se estava envolto nesses pedintes, trombadinhas, nessas injustiças, no medo que era o país? 
Noutra vez um rosto apaixonado, suspirando. Fiquei indecifrado. Naquele tempo, o amor, para mim, era tão passageiro e indefino quanto eterno e confiável. Seria medo da solidão? Seria incapacidade de realização material? Seria apenas amor?
Meus pensamentos sempre foram contraditórios.
Quando passava uma pessoa chorando eu me perguntava como é que alguém pode ficar triste no meio de tanta beleza. Pessoas que passavam alegres, sorrindo. Uma música bonita que vem de dentro das portas ou dos cantores de rua servia como trilha sonora. Palhaços nas lojas me faziam rir. Pessoas tropeçavam e caiam engraçados ou quase. Tanta alegria, como deixar a lágrima cair?
Gestos gentis de pessoas educadas eu achava farsa. Tudo era engodo para nos manter civilizados. O ser humano natural não precisava desse manto social. Meu olhar crítico declarava que éramos egoístas, relaxados, loucos, esquisitos, imundos...
Milhares de pensamentos, contradições, imagens, lembranças.
Na Rua Direita, frutas poluídas, geladeiras, calças jeans, máquinas de lavar. Como era boa a vida na civilizada.
Nas bancas os assuntos que não terminavam, os que nunca começavam, os proibidos, os seios cobertos por papel vermelho, opiniões em fascículo, a alienação dos não alienados, a oposição dos que não querem mudança, o futebol e Ayrton Senna.
No centro de São Paulo nunca se sabia o que se iria pensar ou o que iria acontecer. As surpresas nos esperavam em cada esquina dobrada. De repente algo começava, num outro repente algo acabava. Rápido assim como terminava minha hora de almoço.
Depois XV de Novembro, Boa Vista, cartórios, bancos, fliperama. Eu não me perguntava mais nada, nem reparava em sapatos ou jornais. A pressa era minha companhia. Treze horas batia o São Bento e eu nem percebia.
Hoje, sobre este palco, vejo as ruas de um jeito que não via.
A Florêncio de Abreu numa curva elegante com a Boa Vista. O Largo estreito e o viaduto da Santa que eu chamava Ingênua, mas é Ifigênia. A São Bento é uma enorme calçada feita de atropelos. A Líbero Badaró parece que foi esquecida pelo tempo.
Aos poucos o povo chega. O que era cimento, pedra, calçada ou asfalto, vai se tornando cabeças. Não há mais ruas.
Vejo o prédio rosa e me sinto tão enorme como o Martinelli e tão encantado como o Papa.
Abaixo a cabeça e faço dobrar meu baixo para que meu suor agradecido e seu soar enaltecido sejam percebidos pelo Mosteiro, pelas ruas, pelas cabeças, pelo centro da minha cidade.


Dó-dôm-dóm. 

6 comentários:

  1. Gostei do seu texto. Muito poético. Abraços

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  2. Obrigado por ler e comentar. Que bom que gostou.

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  3. Obrigado por ler e comentar. Que bom que gostou.

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  4. Muito bom o texto! Reflete a alma da Desvairada com muito critério!

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  5. Adorei o texto. Não conheço São Paulo, a não ser através dos relatos dos seus moradores. E, pelo visto, a cidade é um verdadeiro caldeirão de gentes e culturas, onde as pessoas correm literalmente, o tempo todo.

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