Cidade de fato pequena; não tanto que nela não coubessem lá
seus miseráveis, além dos seus milionários e um resto que não sabe que está
longe do além e, também, teme e se nega estar perto de lá.
É fato que as pessoas surgem naturalmente como a terra sob
os pés. Depois de surgidas é que se criam ou produzem dentro dos padrões
patrocinados e, assim, se tornam o que são. Massa, depois de moldada e assada,
dificilmente toma outra forma. O que acontece, mais do que esperam os
patrocinadores, é que nem sempre o ceramista acerta a mistura e, ao invés de
maleável, a matéria fica mais mole ou mais dura. O mesmo acontece com o pão.
Um padeiro descuidado altera o sal, o gosto, o forno, a leveza e torna
indisponível o produto para o consumo geral da população patrocinada.
Pedro é tido na cidade como um desses pães perdidos que não
servem nem para pombos; uma argila misturada e moldada errada; um engano do
Mestre. Todo preconceito cabia nele. Não espere que eu relacione esses preconceitos,
você já os sabe, talvez até os utilize. A prova disso é que, provavelmente,
você já pensou em três ou quatro características de Pedro.
Um dia, por um motivo fútil (como fútil é todo motivo) a
cidade chegou a um limite e não suportou mais Pedro. Gritos tapas, socos,
chutes, ofensas, cotoveladas presenteavam o corpo da massa mal moldada. Algumas
pessoas utilizavam as mãos (que sempre recusaram carinho ou cumprimento ao
Pedro) para atingir, com uma raiva desconhecida, a pele da personagem tão
maltratada desta história.
Pedro não é um mártir ou um herói. Pedro tem medo. Fugiu
como um covarde. Correu como nunca havia feito. E, também de forma inédita, a
cidade corria atrás dele. Impossibilitados de alcançá-lo, começaram a jogar
pedras que acertavam as costas, as pernas, a bunda, a nuca, o pescoço, a cabeça
de Pedro.
Um buraco serviu como abrigo. Protegido quase por completo,
Pedro recebia a dor de apenas uma ou outra pedra atirada com mais habilidade. Cansou,
assim como se cansaram as pessoas da cidade. Todos, inclusive o alvo, foram
dormir.
A madruga despertou a fome em Pedro. Umas árvores com frutos
estavam perto. Ele subiu em uma pequena e comeu. Atento, o olhar voltado para a
cidade percebeu uma multidão se aproximando. Não demorou muito e as primeiras
pedras começaram a chover. A vítima correu para sua toca, assustado.
As pessoas da cidade não foram até onde ele estava. Olhar
para Pedro já causava asco nelas, imagine vê-lo assim, ensanguentado. Ficavam a
uma distância segura e jogavam as pedras que a pedreira descartou, as panelas
que enferrujaram, o resto dos vasos que quebraram, um sofá destroçado. Houve
até aquele, que imitando macaco de zoológico, tirou de si mesmo a munição e
atirou no coitado.
Quando o céu escureceu e a cidade foi dormir, Pedro procurou
por mais das frutas. Comia e olhava para a cidade. Não conseguiria viver assim
por muito tempo, precisava de proteção. De quem?
Assim se repetiram alguns dias. Aos poucos a quantidade dos
atiradores de pedras foi diminuindo, mas não acabou. Alguns jovens e atléticos
estudantes transformaram a atividade de jogar pedras em Pedro em um esporte. Os
mais habilidosos jogam, os mais estudiosos orientavam, os que não eram nada
disso torciam por este ou aquele.
Pedro pensava como era possível uma pedreira dispensar
tantas pedras boas.
Os governantes e os donos da cidade (que mandavam nos
governantes) não apareciam nunca. A princípio, Pedro pensou que isso seria uma
coisa boa, que os milionários iriam convencer o povo a parar com aquilo. O tempo
mostrou que ele estava enganado.
O que os donos da cidade faziam enquanto o povo estava a
atirar-lhe pedras?
Devem aproveitar o tempo para construir falcatruas, meditou.
Em tempos difíceis, a solução pode aparecer como uma palavra
no meio de uma frase: Construir.
Tantas pedras em volta de Pedro que seria possível fazer um
muro. E foi isso que ele começou a fazer.
Quando a população chegou na manhã seguinte e viu aquele
murinho de poucos centímetros.
Estranharam! Murmurinhos sobre o murinho diziam
que o governo mandou construir aquilo para que ficasse definido o limite máximo
para que as pedras fossem jogadas e, assim, tornar mais justa a competição.
A cada noite, antes de iniciar o trabalho, Pedro subia na
árvore mais baixa que ainda havia frutos. Comia sempre assustado e atendo,
olhando para a cidade. O muro, a cada jornada, crescia de altura ou de largura.
Na mesma proporção em que o muro de pedras crescia, a competição
ficava mais difícil e o número de pedras atiradas diminuía. Pedro menos
atingido, mais forte e protegido, trabalhava com mais vontade. Mais algumas
noites e o muro estava tão alto e largo que nenhuma pedra mais vinha de além da
muralha.
Desmotivado pelo muro, o povo se esqueceu de Pedro e,
consequentemente, de lhe jogar pedras.
Pedro não sossegou enquanto não murou toda a cidade. Um muro
sólido.
Outra habilidade, que a necessidade o fez adquirir, era de
subir em árvores. As frutas, agora, só nas mais altas. Um pouco mais seguro, Pedro
subia, mesmo de dia, sempre com o olhar atento para
cidade.
Foi por curiosidade que um dia ele, no alto da árvore mais
alta, olhou para onde sempre estava desvirado. Percebeu a amplitude do lugar e
muitas, muitas, muitas outras distantes cidades. Ficou com medo de que nelas
também houvesse pedreiras.
Não havia mais pedras para protegê-lo de todas as cidades.
E as frutas das árvores acabaram.
A fome, a sede, o frio, a solidão... Tantas necessidades
fizeram Pedro criar coragem e caminhar.
No caminho que não sabia, torcia para encontrar um lugar
onde as pessoas fossem todas feitas de massas variadas. E que não o entendessem
como uma argila que deu errado.
20/08/2019