CAPÍTULO
I
MANHÃ
De
joelhos! A confissão já começou com uma penitência.
O
Padre Gabriel pergunta quais são os meus pecados. Então, sou eu quem define o
que foi e o que não foi pecado? A minha consciência é o meu confessionário? Para
que estou aqui, então? Fico em silêncio, tentando classificar minhas ações,
minhas opções, minhas escolhas. O que foi bom? O que foi mau? Colunas para “CERTO”
e “ERRADO”. Todo erro é pecado?
-
Quais são os seus pecados, filha?
Será que o Gabriel está impaciente?
-
Quando foi a última vez que se confessou? O que houve de lá para cá?
Silêncio!
-
Dona Cecília, quais seus pecados? Os de sempre?
-
Não! rompo o meu silêncio. Desta vez fui mais criativa!
Parece
que minhas surpreendentes palavras o despertaram de uma monotonia monástica.
-
O que houve?
-
“O que houve?” Quer mesmo saber? Quanto tempo tem para me ouvir?
-
A missa é daqui a três horas. Levo meia hora para me arrumar. Duas horas e
meia... são suficiente? Peço para as outras pessoas que estão na fila irem
embora?
Achei
o tom da sua voz um tanto quanto irônico, mas não me ofendi. Permaneci calada.
Olhei a fila. Duas velhas, perdão, senhoras. Isso foi pecado? O que fica na
mente é pecado? Mas dizem que o mal é o que sai da boca e não o que fica no
pensamento.
-
Então, que tantos pecados a senhora cometeu?
-
É que eu não sei!
-
Não sabe? Não sabe o quê?
-
Não sei se as coisas que eu fiz são ou não pecados. Agora percebo que, antes de
vir me confessar, preciso de alguém que os ouça e avalie, para depois eu poder
me confessar. A única certeza que tenho é que muito tempo nesta posição meus
joelhos não aguentam.
-
Estou ficando assustado e preocupado.
-
Não precisa tanto. Não fiz nada de sobrenatural. Sou humana, limitadamente
humana.
-
Como é possível dúvidas? Se fez o certo, não pecou. Se fez o errado, pecou.
Simples.
-
Matar é errado. Certo?
-
A senhora matou alguém?
-
Não sei. Mas isto é só um exemplo. Ainda não falo de mim.
-
Sim, matar é pecado.
-
E se a pessoa mata alguém que tentava matá-la? Ainda assim é pecado?
-
Pela lei foi legítima defesa...
-
E para Deus?
-
É preciso ver as circunstâncias. De qualquer forma, a pessoa tirou a vida de
outra...
-
Roubar é pecado?
-
Sim.
-
E se a mãe rouba um pão para alimentar um filho que morre de fome?
-
Não há como culpá-la. Apesar da culpa.
-
Mas ela pecou?
-
Sim, ela pecou e merece o justo perdão quando fizer a confissão. A senhora
roubou por necessidade?
-
Não sei...
-
Quem não sabe o que fazer sou eu... Há mais pessoas na fila. Pense, reflita,
chegue a uma conclusão e depois venha.
-
Mas eu preciso relatar tudo o que houve. Preciso da sua opinião sobre quando eu
pequei ou não. Não há pessoa melhor que o senhor para avaliar isso. Há algum
outro tempo e lugar para conversarmos?
-
Hora disponível? Só a noite! Depois de todos afazeres da igreja, da missa.
Depois de fechada a secretaria.
-
Virei.
-
Calma! Eu estava brincando.
-
Eu, não.
-
Virá?
-
Virei.
-
Nossa senhora! Faça assim, traga o seu marido junto.
-
O que ele tem com isto?
-
Para sua segurança... Para que não pensem coisas más...
-
Virei só. Não me importa os outros.
-
Se quiser que eu ligue para o seu marido e confirme que virá aqui ...
-
Obrigada, não é necessário. Seu desespero é engraçado. Não posso ver seu rosto,
mas imagino.
-
A senhora é quem sabe. Então a espero. Que Deus a acompanhe!
Qual
Deus me acompanha? Penso e não falo. Saio calada.
Esses
confessionários não permitem ao pecador observar as expressões do confessor,
enquanto contamos nossos erros. Imagino as expressões possíveis do Padre Gabriel.
Pode ser que tenha ficado assustado, admirado, confuso. Sei apenas que não
ficou normal. Seu tom de voz perdeu a entonação de tédio que sempre teve, que
todo padre tem. O que será que está imaginando agora? Pensar isso me diverte.
Sempre
fui Cecília para o Padre Gabriel, para o Padre João, Padre Inácio e tantos
outros que passaram aqui antes dele. E também Cecília para todos aqueles que me
conhecem desde menina. Creio que a maioria nem sabe que meu nome completo é Ana
Cecília Eiras.
O
fato de eu gostar mais de Ana do que de Cecília nunca importou a ninguém. Minha
própria mãe não me chamava de Ana, sempre fui Cecília.
Eu
mesma me apresentava como Cecília. De alguma forma eu entendia que ser Ana era
um desejo e não uma realidade. Eu a reprimia em mim, mesmo antes de saber o que
significava reprimir. Assim, todos sempre me conheceram como Cecília e nunca
por Ana. Acho que os nomes carregam uma
energia própria e talvez a minha vida tivesse sido diferente, se todos me
chamassem de Ana Cecília.
Cecília,
a menina comportada!
Desde
sempre me preocupei em não ofender ninguém, nem magoar. Falava menos que todas
as meninas, e ouvia. Nem sempre entendia o que ouvia, mas ouvia. Ouvia com
atenção. Isso gerou muitas amizades. É sempre bom ter alguém que nos ouça sem
cobranças ou opiniões por perto.
Foi
diferente com a Ana Clara!
Ela,
também, Ana como eu. Melhor dizer, inversamente como eu!
Todos a chamavam de Ana, quase ninguém sabia
que era Clara. Espevitada como um garoto, jogava futebol misturada como um deles.
Éramos vizinhas. Nas noites de não muito frio ou chuva, ficávamos sentadas no
quintal da casa dela e contávamos, uma a outra/uma e outra, como havia sido o
dia e o que achávamos das coisas todas.
Por
sermos duas Anas, não pronunciávamos nomes em nossas conversas. Apenas éramos.
Sem definições ou preocupações nominais.
Um
dia a família dela se mudou.
Essa
mudança me deixou muda. Não me lembro de mais ninguém, na época, que tivesse
ouvido tanto a minha voz.
CAPÍTULO
II
TARDE
As
memórias talvez nos traiam. Os tempos idos talvez fiquem arquivados de maneira
inconsequente, sem tampas ou ordem. É até provável que tudo esteja jogado e
misturado. Nada do que fui é importante demais para ser etiquetado ou
emoldurado. Os fatos se embaralham com o tempo e tudo parece ter acontecido
junto, de uma só vez.
Acho
que sempre fui a mesma, o tempo todo.
Creio
que, por essa época, fiz a primeira comunhão e comecei a me confessar. Todo
primeiro domingo do mês, falava das minhas ações pecadoras e infantis. Porém,
guardava as minhas opiniões pecaminosas. “Não esconda nada, Deus tudo vê, tudo
sabe!”, é o que diziam. E tudo parecia ser pecado!
Mas
meus pensamentos... Eu nunca vi o pensamento de ninguém. Será que Deus poderia
vê-los? Ouvi-los?
Eu
temia os Padres. Acreditava que eles eram seres sobrenaturais, que sabiam de todos
os pecados que Deus poderia ter visto. Sabiam mais das minhas ações do que meus
pais. Mas meus pensamentos ninguém sabia, a não ser Deus, se é que ele invadia
minha mente.
Numa
quermesse, eu tinha uns 15 anos, conheci um rapaz. Ele perguntou meu nome.
-
Ana Cecília!
Nem
sei por que eu falei assim. Talvez, para ele, eu não quisesse ser a mesma
Cecília que todos conheciam.
-
Ana?
-
Cecília! Completei rápida, fazendo a correção.
-
Ana ou Cecília?
-
Qual você prefere?
Torci
para que ele escolhesse Ana.
-
Ana! É mais fácil.
-
Sou Ana, então.
Foi
nessa quermesse que dei meu primeiro beijo. Não namoramos e nem nos vimos de
novo. Foi apenas um momento.
É
claro que eu precisaria confessar o beijo. Deus viu!
No
domingo, perdi a hora e não fui me confessar. Teria sido esse o propósito do
meu inconsciente? Não pude comungar, não estava com a alma limpa.
Na
hora da comunhão, todos comungaram cabisbaixos rezando. Fiz uma breve oração
pedindo perdão a Deus e abri os olhos. Vi o Padre em uma atitude estranha. Com
o dedo no céu da boca, desgrudava a hóstia. No catecismo ensinaram que isso era
proibido, não poderíamos tocar na hóstia consagrada depois que ela entrasse na
nossa boca. Meu dedo humano não poderia tocar o corpo divino de Cristo.
Mas
a hóstia grudar no céu da boca do Padre... Um ser divino não deveria sofrer as
banais ações humanas. Se o Padre enfrenta as limitações humanas, como ter a
hóstia sagrada grudada no céu da boca... Eu percebi que ele não era um ser
sobrenatural. Pela primeira vez, o Padre se mostrou como um ser humano para mim.
Depois
da missa me confessei e não falei nada sobre o beijo e, o que é melhor, não me
senti culpada, nem sofri uma penitência maior que a de sempre por conta do
pecado visto por Deus e não sabido pelo padre.
Com
o tempo vieram alguns namoros, que terminaram por motivos vagos. Coisa boba,
sem riscos maiores que uns beijos mais afoitos sem sequências ou consequências.
Conheci
o Joaquim quando tinha 19 anos. Outro namoro sem grandes aventuras, mas nos
dávamos bem e combinávamos em muitas coisas. O tempo foi acontecendo numa
rotina evolutiva normal para um relacionamento.
As famílias se conheceram e, aos poucos, ficamos cada vez mais
compromissados.
Compromisso,
obrigações e liberdades. Para Joaquim eu também era Cecília, a mulher que
futuramente iria ser sua esposa. Algumas
vezes, sob luz fraca da varanda de casa, Cecília ia descansar e a Ana me tomava
invisível e silenciosamente. Os desejos ultrapassavam os beijos e assustavam
meu noivo. Não esqueço seus olhos arregalados e sua boca aberta enquanto guiava
sua mão para meu seio. Nunca confessei isso aos Padres, nem Deus lhes contou.
Joaquim
não falava sobre as noites de minha audácia. Com o tempo, ele se tornou mais
atrevido e começou a explorar mais meu corpo, sempre na varanda mal iluminada e
mantendo o silêncio no dia seguinte.
Uma
vez, sem motivo maior que o tédio, tentei terminar o namoro. O garoto ficou
apavorado e mostrou toda sua fragilidade emocional.
As
duas famílias, a dele e a minha, vieram falar comigo. Estava eu, Cecília,
doida? O que havia acontecido? Que idiotice era aquela?
Por
que não perguntaram à Ana?
A
opressão, a pena e o sentimento de culpa me fizeram reatar o compromisso.
Estava
eu fadada ao tédio!
Vitória de Cecília! Que viessem a vida e a
rotina de todos os casais.
Na
maior parte do tempo, Ana hibernava. Raras vezes despertava. Como quando meus
pais viajaram. Minha tia, que ficou para me fazer companhia, dormia
profundamente no sofá. Então, por decisão e opção de Ana, e não de Joaquim,
perdi a virgindade. Minha dorminhoca tia não percebeu, O casamento já marcado e
o sexo, entre nós, me pareceu uma consequência natural; uma antecipação do
futuro. Depois disso procurávamos, mesmo sob a luz do sol, recantos isolados e
momentos solitários para nos divertirmos.
Quando
ia me confessar, pensava em contar. Sempre me voltava o mesmo pensamento: Deus
viu e sabia. Nunca contei. Se era realmente errado, o Todo Poderoso, que tudo
sabe e tudo vê, poderia cochichar na mente dos Padres, para que eles me
repreendessem. Se Deus lia meus pensamentos e via meus atos, nunca disse nada
pela boca dos Padres ... Sentia-me, assim, perdoada.
E
por que, agora, quero me confessar?
Fico
aqui conversando, em pensamento, não sei com quem. Esquizofrenia ou só
esquisitice mesmo?
Quem
é você que vai, aos poucos, sabendo mais de mim do que qualquer outra pessoa
que eu conheça? Com quem falo? Qual seu nome? Qual a sua história? Qual seu
tédio? Qual o seu pecado?
Desde
que a Ana Clara se mudou, tenho isso de falar sozinha. Falar em pensamento,
para que Deus não ouça, não saiba, não me culpe. É como se alguém (que eu chamo
de você) estivesse aqui ao meu lado, ceciliamente calado e me ouvindo.
Paranoia?
Telepatia?
Mas
falo e não te ouço. Você, meu ouvinte mudo, já não me satisfaz totalmente. Por
isso decidi contar tudo o que houve, nesses últimos anos ao Padre. Os psicólogos
me assustam e podem detectar alguma patologia, não quero me saber doente, nem
me curar. Não quero a ciência me revelando. Quero o místico, o Divino, a ilusão
criada e misturada com o humano.
Abro
a porta e me abasteço com uma taça com vinho. Um relaxamento breve antes de
iniciar a rotina da casa e do jantar.