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O celular desperta. Cinco e trinta. As mãos, mecanicamente,
pedem mais cinco minutos. Adormece.
Nem um minuto depois, acorda.
A noite foi eterna. Nem sabe a hora em que conseguiu dormir.
O tempo é estranho, pois não é igual para todos. Ela lembra de seus quatorze anos:
os sonhos, as brincadeiras de meninas, os serviços de casa, a escola, as aulas,
o pensamento solto, as preocupações das notas, os finais de semana eram tão
distantes. Um ano demorava um século para passar, mas havia a certeza de ele
passaria e ela estaria lá.
O alarme do celular toca novamente. Ela o desliga. Esqueceu
de desativar o alarme. Esqueceu-se de muitas coisas.
Não é bem um esquecimento. É um não se importar. Não fez o
jantar, que importância isso tem? Não colocou o lixo para fora, que mal isso
faz? Não deu descarga quando foi fazer xixi, quem vai saber? Não ligou a
televisão a noite, quem vai sentir falta da novela? Não vestiu a camisola, que mal há em dormir com a vestimenta do dia? Não tirou a roupa da
máquina de lavar, quem precisará delas? Não jantou, quem se importa? Mas
poderia ter dado comida ao cachorro. Coitado, não tem culpa. Parece até que
compreendeu. Os animais sentem quando algo ruim acontece, nem latiu. Chorou um
pouco quando chegou. Só!
Puxa vida!
Deveria ter desligado o alarme do celular.
Demorou tanto para dormir. Acordar cedo para quê? Acordar para quê? Ela não vai chorar novamente. Depois de muitas
lágrimas parece que o corpo fica anestesiado. A dor, e ela sabe que ainda dói,
amolece os músculos do corpo. O desespero leva o pensamento para longe. Talvez,
se ela tomar o calmante que a vizinha trouxe, até consiga dormir. Dormir para
quê?
Senta-se com os pés fora cama como todos os dias, um pouco
mais tarde do que a rotina. Ainda duvida da necessidade de se levantar. Observa o cachorro deitado sob o batente da porta.
Pensa na fome que ele deve ter e sente dó. Como é que os animais sabem da dor
dos seus donos? Não latiu a noite inteira. Só chorou um pouco quando ela
chegou. Normalmente ele não fica ali. Dorme no quarto do menino. Hoje veio para
cá. Como ele sabe que a dor dela é maior que a dele? Será que é?
- Acorda, você precisa comer!
Ela se levanta, nem sente as dores nos pés ou nas costas.
Calça os chinelos, por costume, e caminha para a cozinha. O cachorro a segue, enroscando em
seus passos. Não abana a calda, nem late. Sabe que vai comer e, provavelmente,
está feliz por isso, mas contém seus gestos. Como sabe?
- Hoje seu café é sozinho. O menino não virá te fazer um
carinho.
As orelhas baixas. O olhar triste. A resignação.
- Nem hoje, nem nunca mais!
As lágrimas, que estavam esgotadas, ressurgem. Ressurgirão
ainda por um bom tempo.
Tempo longo que ela não sabe mais contar ou entender.
Tempo maior que o neto teve.
Tempo que não se entende.
Por quê?