Ainda quando garoto
Mauro decidiu viver bastante. Os pais não o registraram, ele mesmo teve a honra
de fazer isso. Já era até casado, amasiado, adonado, acompanheirado, usava
algema de argola no dedo, sei lá; melhor dizer que tinha mulher filhos. Colocou
a data de nascimento que escolheu por lhe soar melhor no ouvido ou no
pensamento, sem nenhuma preocupação com o verídico, ou a correta exatidão do
tempo. Não, a idade é o que menos lhe importava. Só queria saber de viver, e
muito!
A cidade é pequena e
por mais que a pessoa não saia do portão pra fora, como se costuma dizer lá e
em muitos outros lugares, sempre se sabe da vida de todo mundo. É dessa forma
que eu soube dessa história que conto agora.
Não aconteceu nada de
extraordinário na vida do Mauro. Até mesmo por querer viver muito ele era
danado pra escapar de complicação. Cresceu, trabalhou muito, ganhou pouco, não
abusou nas despesas, não comia muito, não tomava chuva, uma pinguinha ou outra
só numa festa ou almoço especial. Ensinou pouco aos filhos, o necessário para
que eles tomassem suas próprias decisões e vivessem como lhes parecesse melhor.
Não criava expectativas. Sempre teve muitos conhecidos, raros amigos e até
alguns inimigos.
Como uma pessoa assim
pode ter inimigos? Também não sei. Deve ser coisa de empatia. As vezes o santo
da gente não consegue engolir o de outra pessoa sem mais nem porque e desejamos
que todo mal aconteça com o fulano. Geralmente isso é recíproco. O tal fulano
também deve comemorar nossas desgraças. Pronto nasceu um desafeto, uma
inimizade, um inimigo.
O Mauro, acho até que
por causa desse propósito de querer viver muito, era bem na dele mesmo. Não
gostava que ficassem perguntando muito da sua vida ou do seu tempo, seus
costumes, suas idas e vindas. Aliás, ele não gostava que fizessem isso com
ninguém. Eram já palavras certas sua, quando alguém fosse sair e outro
perguntasse ao tal para onde iria, Mauro respondia pela pessoa “tá indo morrer
o que ainda tem pra viver, deixa ele”. E dessa forma filosofava sua existência.
Fazer alguma coisa devida ou necessária servia para fazer morrer um momento da
vida.
Essa forma de entender
a vida e a morte como sequências e não consequências serviu para que ele
aceitasse sem muita euforia o que o destino lhe dava de bom e sem muito
desespero para as tragédias que a sina colocou em seu caminho.
E não é que deu certo?
Mauro conseguiu viver muito. Viu a cidade se transformar, evoluir, piorar,
diminuir, crescer de novo e tudo assim algumas vezes sempre a se repetir. E
como a decisão de viver muito era uma coisa pessoal, lá se foram para o além os
pais, a esposa, os amigos, os vizinhos, os filhos, os netos e outros bichos. Só
sobrou um inimigo. O Ernesto.
Apesar da saúde sempre
bem, para não viver desacompanhado (que isso não serve para quem quer viver
muito) mudou-se, por vontade própria para um asilo. Lá não quis fazer amigos
nem novos inimigos, já havia passado o tempo disso. Não arrumou namorada.
Quando precisado pagava pelo sexo. As meninas de preço combinado eram mais
novas, saborosas, cheirosas e mais baratas do que qualquer uma que o quisesse
como companheiro. Tomou gosto por ler e ficava na sala lendo ou jogando dominó
com os colegas.
Continuava o mesmo. Se
alguém fosse sair e alguma enfermeira perguntasse para onde iria, o Mauro
respondia pela pessoa “tá indo morrer, deixa ele”. Se ele fosse o que saia,
respondia “to indo morrer”. Todo mundo sabia que seria assim e até parecia
teatro, sempre repetiam a mesma cena do “Aonde vai? Tô indo morrer!”.
Pois aconteceu do
Ernesto morrer.
Como já foi dito aqui,
cidade do interior todo mundo sabe de tudo. Que os dois mais antigos da cidade
eram inimigos até as crianças do berçário sabiam.
A enfermeira nunca
pensou em dar uma notícia fúnebre sorrindo. Por conta da inimizade dos dois ela
achou que ele ficaria feliz em saber da morte do inimigo.
O Mauro, quando soube,
arregalou os olhos assustado e ficou sem ação. Vestiu luto e não falou por dois
dias, nem jogou dominó, nem leu nada. Só pensava. A morte do Ernesto fez com
que, pela primeira vez na vida, ele se sentisse sozinho. Não havia mais
família, amigos ou inimigos. Só restou ele.
No terceiro dia após a
morte do Ernesto, Mauro juntou todas as suas poucas coisas. Vestiu a melhor
roupa, pegou a mala e um guarda-chuva e ia saindo pela porta da rua, parou
quando a enfermeira lhe perguntou:
_ O que é isso, Seu
Mauro? Tá indo morrer?
Ele olhou para ela e
respondeu:
_ Não. O que eu tinha
para morrer já morri. Agora eu vou é viver!
Saiu. Ninguém mais
ouviu falar do Mauro naquele lugar...
...e se ouviram não me
contaram.