Para meus filhos (sempre), mas em especial, hoje, para minhas alunas e meus alunos do Colégio Wellington nos anos 90.
Ainda
sentado à mesa, o pai toma o café da manhã. A filha vem com o caderno, o estojo
e uma disposição anormal para fazer o dever de casa num sábado pela manhã.
-
Não quero comprar nada. Respondeu distraído pensando que estava na rua e era
parado por algum vendedor disfarçado de pesquisador.
-
Mas eu não quero vender nada.
Reconhecendo
a voz da filha, mudou a resposta.
-
Então saiba que também não vou te comprar nada.
-
Pai, é pesquisa da escola!
-
Se eu não tiver que gastar dinheiro, tudo bem. Manda.
Com
o mesmo entusiasmo de antes a menina lê a primeira, das 10 perguntas da
pesquisa, e já mantém a caneta pronta para fazer as anotações.
-
Pai, você é capitalista ou socialista?
-
Como assim?
-
Assim: você é capitalista ou socialista? Qual você gosta mais?
Depois
de demorar uma eternidade para engolir o pedaço de pão que já estava na sua
boca, ele resolve responder.
-
Veja bem! Não é bem assim “você é capitalista ou socialista?” Há muitas outras
coisas implicadas nisso.
-
Entendi! Mas você é capitalista ou socialista?
Meio
sem jeito, espiando se ninguém os ouvia, ele pergunta:
-
O que sua mãe disse?
-
A pesquisa é só pra fazer com o pai.
-
E quem não tem pai? Que professor desumano é esse? Será que ele não pensa no
sofrimento dos alunos que já perderam seus pais?
-
Eu não sei. Mas eu tenho pai. Responda!
Sem
saber direito ainda o que dizer, começa a responder.
-
Anota aí.
Ela
já recuperou o entusiasmo e está pronta pra anotar.
-
Anarquista.
-
O quê? Disse ela surpresa.
-
Anote que sou anarquista, disse o pai com certo orgulho. Não sou nem
capitalista, nem socialista. Sou anarquista!- e ainda completou com um
portunhol sofrível - Se hay govierno, soy contra!
-
Mas... pai... tenta começar a argumentar a garota.
-
Anarquismo, filha, é uma forma de governo onde não há governo. Disse ele com um
tom didático.
-
O quê? - pergunta a filha surpresa.
-
No anarquismo, filha, todo ser humano é livre nas suas ações. Cada um faz o que
quer, na hora em que quiser e da maneira que preferir.
-
Você pensa assim, pai?
Sentindo
que suas palavras poderiam produzir complicações num futuro próximo na relação
com a adolescente que o interpelava, resolveu, estrategicamente mudar de
opinião.
-
Não. Apague isso!
-
Eu nem escrevi.
-
Ainda bem! Ainda bem!
-
O que eu escrevo então?
-
Sabe, durante muito tempo fui anarquista. Mas percebi, pelas experiências da
vida, que para a evolução da sociedade é preciso um pouco mais de
responsabilidade, de comprometimento com o próximo, por isso mudei de opinião.
-
O que eu escrevo? - perguntou a menina desanimada pela forma como o pai
enfatizou a palavra “responsabilidade” na frase que acabara de falar. Coloco
que você é socialista ou capitalista?
-
Cooperativista.
-
Como?!?!?!?!?
-
Cooperativista. Trabalho em cooperação. Todos são agentes do processo, todos
tem o proveito dos resultados e todos participam da administração das ideias. Não
há mandados, nem mandantes. Não há líderes.
-
Paiê!
-
O que é filha? - disse o pai ainda perdido em seus pensamentos cooperativistas.
-
Você é capitalista ou socialista?
-
Já respondi: cooperativista.
-
Não pode.
-
Como não? Eu sou cooperativista. Sou a favor das cooperativas. Mas não falo
dessas que alguns maldosos advogados montam para que muitos trabalhem numa
quase escravidão e poucos saboreiam os resultados. Sou o que eu próprio chamo
de cooperativista puro.
-
Mas não tem isso aqui...
-
O que tem aí?
-
Aqui só tem capitalismo e socialismo. Tem que escolher entre um desses dois,
entendeu?
-
Que professor limitado esse. Quer definir os conceitos políticos em apenas duas
opções. Diga a ele que o Muro de Berlim já caiu.
-
Tudo bem, depois eu digo isso a ele. Mas agora preciso saber se você é
capitalista ou socialista.
-
Não é só assim, escolher um desses dois e acabou. A coisa é mais complexa. Há
verdadeiras formas de viver envolvendo isso.
-
OK, é mais complexo... meu professor é limitado... mas, por favor, qual dos
dois você é?
-
Seu professor é o quê?
-
Como assim? Corinthiano, eu acho.
-
Não. Ele é capitalista ou socialista?
-
Sei lá.
-
Olha, eu não conheço seu professor, nem ele me conhece.
-
E daí? Disse a menina já com grandes sinais de irritação.
-
Se você escrever aí que eu sou socialista ele vai me imaginar um cara barbudo,
cabeludo, com óculos redondos e usando uma camiseta do Che Guevara.
-
Che Guevara era socialista?
-
Ele era o quê?
-
Anarquista, eu acho.
-
Então você usava camiseta dele?
-
Aí é que está o problema. Eu usava uma camiseta do Bob Dylan.
-
Era? Ele já morreu?
-
Nem sei quem ele é?
-
Será que o Bob Dylan morreu?
-
Ele é o quê?
-
Você, que ouve música o dia inteiro, não sabe quem é Bob Dylan?
-
Não.
-
Então acho que ele já morreu.
-
Quem sabe?
-
Ele é, ou era, um roqueiro. E o rock é um dos maiores símbolos do capitalismo.
Pelo menos era no tempo do Bob Dylan.
-
Então você é capitalista?
-
Não!!!!!!!!!!
-
Mas você usava camiseta do Bob Dylan.
-
Acontece que eu nunca gostei do Bob Dylan. Pra ser bem sincero nem conheço as
músicas dele.
-
Por que você usava a camiseta dele?
-
A camiseta era legal. Ganhei de uma namorada e fazia média com ela. Eu gostava
daquela camiseta.
-
Concluindo, você é socialista.
-
Isso é você quem está dizendo.
-
Mas você disse que não gostava do cara da camiseta.
-
E desde quando o fato de alguém não gostar do Bob Dylan implica que ele é
socialista? Bob Dylan é música e não política.
-
Filha, ser socialista significa não ser apegado às coisas materiais. Não há o
privativo, a propriedade, o acúmulo de riquezas, a família que transfere os
bens para os herdeiros, não há seguro de vida... Tudo é de todos. E eu não
quero ninguém mexendo nos meus cds do Milton Nascimento. Ninguém, entendeu?
-
Entendi, nem eu.
-
Isso. Mas falta ao socialismo a chance de progresso individual. O orgulho
pessoal deve ser substituído pelo nacional.
-
Certo.
-
Então você é capitalista?
-
Também não! Responde o pai na maior calma.
A
menina vai quase à loucura.
-
Por que, pai, por quê?
-
O capitalismo é insensível às humanidades.
-
?!?
-
Os seres humanos, no capitalismo, são como peças de uma engrenagem monstruosas
onde você vale enquanto você é. A partir do momento em que você não pode mais
desempenhar suas funções deixa de ter valor. Você não vale mais nada. Virou
sucata, lixo, estorvo. Você não vê como os aposentados são tratados?
-
Pai, pela última vez... Por favor, pai... Por tudo que você mais respeita e
admira... Pai, o que eu coloco aqui?
O
pai para e vê o desespero da filha.
Pensa. Sente-se acuado. A angústia da filha toca seus mais nobres
sentimentos. Pensa. Pensa. Resolve tomar uma atitude.
-
Anote aí, filha!
-
Oba!!!!! Disse a filha percebendo aquele brilho no olhar do pai que só aparece
quando ele toma uma decisão definitiva.
-
Anote que eu gostaria de viver num país capitalista...
-
Peraí. Pa-ís ca-pi-ta-lis-ta. Pode continuar.
-
Mas sendo governado por um socialista radical.
Ela
nem continua escrevendo. Levanta os olhos do caderno e encara o pai como quem
diz que não há jeito para o caso dele. Não fala mais nada. Levanta-se fazendo
bico com a boca. Pega o caderno e o estojo e vai saindo.
-
Mas, filha, e a sua pesquisa?
Respirando
fundo, ela se volta para o pai e não diz nenhum palavrão, mesmo sendo essa sua
maior vontade. Ela apenas responde, com uma voz calma e tranquila.
-
É para terça-feira de manhã. Segunda à noite eu faço.
Virou-se
novamente e saiu.
O
pai olhando o café com leite frio que ainda está na caneca pensa: Vá entender
esses adolescentes!!!